Sócrates – O Mestre

O MESTRE
Excertos de Micheline Sauvage, Sócrates. Agir, 1959 (original em francês: Socrate ou la conscience de l’homme

“Se tivesse o entusiasmo de um Platão a escutar Sócrates, exclama Kierkegaard, se meu coração pulsasse tão forte quanto o de Alcibíades, e ainda mais forte que o dos coribantes, se minha paixão em admirá-lo só pudesse ser satisfeita abraçando este homem prodigioso, sem dúvida Sócrates sorriria para mim dizendo: “Meu caro, que amante enganador, não é verdade? Pois queres me divinizar por causa de minha sabedoria e ser aquele que me compreendeu melhor e a cujo amplexo de admiração não pude me furtar; não és acaso um sedutor”? E se não quisesse compreendê-lo, então sua ironia fria me lançaria no desespero quando me explicasse que tinha a meu respeito uma dívida tão grande quanto a que eu tenho para com ele, ó rara probidade, que não engana ninguém, mesmo aquele para o qual a própria felicidade consistisse em ser enganado… ó rara fidelidade, que não seduz ninguém, mesmo aquele que emprega toda a arte da sedução para se fazer seduzir”! O erro de Alcibíades é uma idolatria que quer apenas abraçar determinado homem de carne e osso sem deixar, entretanto, que se dissipe a pessoa de Sócrates atrás de sua doutrina. Mais insidiosamente ainda, ela consiste em compreender está doutrina como certa aquisição a fazer, como a transmissão de saber do mestre ao discípulo.

Eis-nos no próprio núcleo do evento socrático. A Grécia não carece de saber, pois desde Tales de Mileto, já um século antes, viu florescer um número extraordinário de sophoi, de sábios. Carece acaso de sabedoria? Foi, por ventura, Sócrates o primeiro a desviar a pesquisa humana das coisas do mundo para os problemas do homem como para seu objeto próprio? É o que se costuma dizer, seguindo a tradição formada por Cícero, do qual transcrevemos um texto ilustre: “Basta dizer que, até Sócrates, discípulo de Arquelau, que o fora de Anaxágoras, a filosofia se contentava em ensinar a ciência dos números, os princípios do movimento e as fontes da geração e da corrução de todos os seres; procurava, com cuidado, a grandeza, as distâncias e o curso dos astros; numa palavra, as coisas celestes. Sócrates, porém, foi o primeiro a fazer descer do céu a filosofia, introduzindo-a, então, não só nas cidades, mas até nas casas e forçando-a a regular a vida, os costumes, os bens e os males”. Segundo este testemunho, o pensamento pré-socrático (na medida em que é possível falar no singular) seria um pensamento de matemáticos, de “fisiólogos” e de “meteorólogos” e a inovação de Sócrates teria consistido em propor o homem como objeto de reflexão. Antes dele, a filosofia natural; com êle, a ética, — termo que, aliás, parece ter sido ele o primeiro a empregar.

Mas Cícero se engana e nos engana. Apesar da alusão aos Pitagóricos, ele pensa, sobretudo, na física jônica e, especialmente, em Anaxágoras, a cujo respeito se conta certa historieta que poderia muito bem servir de chave para toda a passagem. Ora, a ambiguidade essencial da sophia se opõe a esta interpretação do “momento histórico” de Sócrates. Falar em “filosofia natural”, a propósito dos pré-socráticos, exige, pelo menos, que se distinga na especulação anterior a Sócrates diversas “correntes”, pois aquele do qual saiu o que há de ser mais tarde a ciência ocidental (a matemática talesiana e pitagórica, a física e a cosmologia dos Jônicos e da escola de Abdera) é apenas uma delas. O pensamento dos Eleatas, por exemplo, é-lhe exterior, como já observara Aristóteles.” Além disso, a própria distinção é artificial. Ciência e sabedoria, para esses povos, são uma coisa só expressa por uma única palavra. A arte de viver consiste em certo conhecimento e este conhecimento é, em si mesmo, sem passagem nem aplicação, uma arte de viver; em seus começos o pensamento ocidental é, neste ponto, um pensamento oriental. Por conseguinte, se pusermos de lado (e ainda…) os três “físicos” da Jônia, isto é, Anaximandro, Anaxímenes de Mileto e Anaxágoras de Clazomenos, assim como os atomistas de Abdera, o misterioso Leucipo e seu discípulo mais conhecido Demócrito, o juízo de Cícero perde aplicação, pois Sócrates não precisou de fazer descer nas “cidades e nas casas” uma filosofia que só pôde desinteressar-se “pelos costumes, pelos bens e pelos males” acidentalmente, em função de um ou outro temperamento individual. A especulação pitagórica, junta com o orfismo, transforma a escola numa seita cuja regra desce até às prescrições dietéticas; a Antiguidade atribuía ao próprio Pitágoras algumas obras de pedagogias e de política. A cosmologia de Heráclito é inseparável de uma sabedoria que pensa o homem no Todo, pois “as fronteiras da alma, não lograrás nunca alcançar por longe que te conduzam teus passos em todos os caminhos, tão profunda é, pois, a Palavra que nela habita”. “Possuímos mesmo certas máximas práticas de Heráclito que, pelo menos, quanto ao espírito senão pela forma, já são socráticas; e nem estaria fora de lugar nos Memoráveis, se a compreendermos como convém, esta frase ambígua que deixa transparecer o reflexo de uma ironia: “Os filósofos da natureza devem explorar um domínio extremamente vasto. A ciência das coisas é um conhecimento múltiplo que não constitui a sabedoria. O mesmo acontece com a cosmologia eclética de Empédocles que descreve simultaneamente um itinerário místico. A filosofia não precisa, pois, descer do céu à terra quando o céu e a terra formam uma unidade aos olhos daquele que conhece por ciência genuína, o “bem-aventurado que possui a riqueza de uma inteligência divina”, que Empédocles propõe como modelo aos mortais afligidos pelo mal da ignorância. O termo “física”, aplicado a semelhante forma de pesamento, dá aos espíritos de nosso tempo uma ideia inexata.

Em suma, o testemunho desajeitado de Cícero desloca a inovação socrática. O que faz de Sócrates o primeiro dos modernos não é o fato de se ter interessado pelo curso da vida humana, pois desde o nascimento, no século VI, a sabedoria helênica nunca pretendeu separar os problemas do homem das “coisas celestes”. Não é, portanto, a descoberta de um novo objeto ou de uma nova direção para a reflexão, mas a descoberta do próprio sujeito que reflete.