Szlezák (2009:23-25) – mito da escrita

Em 274 a6, Sócrates começa a extrair das explanações feitas até aí as conclusões a respeito da conveniência ou inconveniência do escrever. Aqui, ele se orienta pela aprazibilidade a deus da relação humana com os “discursos” (λόγοι) (274 b9). Sobre aquilo que apraz a deus, ele afirma ter sido informado apenas por ouvir dizer (cl), mas logo enuncia também — sem nada prometer — a possibilidade de obter conhecimento próprio sobre aquilo que nos tomaria independentes das opiniões humanas (c2-3).

Esse “ouvir dizer” consiste numa pequena história sobre o antigo deus Thoth, narrada no Egito, como diz Sócrates. Fedro percebe que a história não é autêntica (275 b3) — e é imediatamente repreendido por essa crítica: pouco importa de onde vem a história e quem a narra; só conta se o que é dito está certo (b5-c2). Com efeito, não se trata de um ouvir dizer, mas do conhecimento próprio. A interpretação desse conhecimento sob máscaras alheias perturba apenas o indivíduo não filosófico.

A história “egípcia” narra como o deus Thoth apresentou suas invenções ao rei Thamus, entre elas a escrita (γράμματα). O crítico rei julgou a nova aquisição de modo menos favorável do que o orgulhoso inventor: a escrita não tornará aquele que a aprende mais sábio nem fortalecerá sua memória, como crê Thoth. Ao contrário, ela promoverá o esquecimento nas almas, pois o indivíduo confiará no auxílio externo da escrita, em vez de exercitar a memória interna. A escrita é um veículo do recordar, não da memória. E a escrita não produzirá sabedoria, pois por meio dela o indivíduo poderá “ouvir” muita coisa sem o acompanhamento do ensinamento (διδαχή), e isso torna as pessoas ricas de informações, mas não de conhecimentos (πολυήκοοι — πολύγνωμους), ou seja, ela apenas provoca nelas a presunção da sabedoria e as torna desagradáveis na relação com os outros (274 c5-275 b2).

A sentença de Heráclito, “a multiplicidade de noções não ensina a ter inteligência” (πολυμαθίη νόον ’ἔχων ού διδάςκει), não é apenas continuada aqui, mas também interpretada de modo mais profundo e ao mesmo tempo mais concreto, levando em consideração as duas forças mais essenciais que determinam toda formação intelectual: livros e pessoas. Aquilo que νόον ’ἔχων διδάσκω, é o ensinamento ou “doutrina” pessoal, διδαχή só pode — no contexto presente, em que o oposto é a aquisição de conhecimentos a partir da escrita (γραφή, 275 a3) — significar o diálogo oral do receptor com um διδάσκων mais perito, que deve entrar no lugar do livro, o qual apenas aparentemente transmite conhecimento, para que surja sabedoria real e não apenas sua aparência.

Após a já citada repreensão de Fedro, Sócrates estabelece, como conclusão da história, que seria muito simplista achar que se pode transmitir uma “arte” (τέχνη) por meio de letras ou receber delas algo claro e confiável. Tudo o que os λόγοι escritos podem fazer é lembrar ao conhecedor aquilo de que trata o escrito (275 c5-d2).

Na formulação sintética do que se deve aprender com a história de Thoth, o significado de “arte” (τέχνη) aqui deve ser o mesmo que está na própria história. As “artes” que o deus havia inventado são jogo de tabuleiro, dados, escrita, aritmética, geometria e astronomia (274 c8-d2). Τέχνη designa inicialmente a própria habilidade ou ciência, e não, por exemplo, sua apresentação. Uma apresentação das regras do jogo de tabuleiro, assim como das provas da geometria, pode muito bem ser dada em forma escrita, por meio de sinais que são “estranhos” à alma (ύπ ἀλλοτρίων τύπων, 275 a4) — no entanto, o que faltará será a compreensão “interior”, aparentada com a essência da coisa e que só pode ser produzida por ensinamento pessoal, διδαχή. Por conseguinte, τέχνη significa um campo objetual e seu domínio pela compreensão por alguém que não seja apenas δοξόσοφος, possuidor de opiniões, significa o campo objetual como compreendido e dominado. Em contrapartida, é totalmente estranho a esse contexto o significado como “manual”1, para o qual falta qualquer indicação nesse sentido. Platão fala do serviço cognitivo da escrita de modo totalmente geral (γράμματα, 275 c5; γραφή, 275 a3), não de uma determinada forma de apresentação escrita.

O serviço prestado pela escrita consiste em lembrar àquele que sabe as coisas comunicadas (275 c8-d2). O “que sabe” (ó είδώς) não pode ser outro senão o σοφός, o sábio, do qual ο δοξόσοφος se distingue pelo fato de ter continuado sem ensinamento ἄνευ διδαχής. A história de Thoth quer mostrar que o despertar primário do verdadeiro conhecimento está ligado ao ensinamento, enquanto a escrita se presta, quando muito, à reativação secundária do conhecimento já existente — em todo caso, isso se aplica se exigimos do conhecimento que seja algo nítido e estável (275 c6). A próxima seção mostra que a conquista de conhecimento adquirido por via escrita jamais pode satisfazer essa condição.


  1. Por isso é incorreta a tradução de R. HACKFORTH: “a written manual” (Plato’s Phaedrus, Cambridge, 1952, 158); ele também é seguido, por exemplo, por W. K. C. GUTHRIE, A History of Greek Philosophy, 1975; IV: Plato. The Man and his Dialogues: Earlier Period, 57. Manuais de retórica são citados na segunda parte principal do Fedro; embora o contexto aí aponte claramente para a retórica, Platão sempre oferece uma especificação adicional para τέχνη (τέχνη ῥητορική, 271 a5; τέχνας [περί] λόγων, 261 b6-7, 271 c2; βιβλία περί λόγων τέχνης γεγραμμένα, 266 d6): ο termo τέχνη sozinho não significa simplesmente “manual” — muito menos se foi anteriormente empregado no sentido habitual (“arte”). Na Carta VII (341 b), τέχνη também não significa manual, ver abaixo p. 385 s. 

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