Thonnard: O Uno

Excertos de Thonnard, Compêndio de História da Filosofia

125. — O Uno é para Plotino o nome próprio de Deus, ou mais exatamente daquele que um dos seus discípulos chama hypertheos, o Deus supremo, e que ele chama Pai dos Deuses, Rei dos reis o Primeiro, Fonte e Princípio; numa palavra ” mais que Deus “. Mas, entre todos, o nome de Uno foi escolhido para exprimir o carácter distintivo de Deus : a transcendência, em virtude da qual a sua inefável simplicidade possui em grau infinito as perfeições determinadas e multiplicadas nas criaturas. Eis porque Plotino, para expor a natureza de Deus, serve-se de um duplo processo : um positivo, outro negativo.

A) Teologia positiva.

Sendo Deus o princípio e a fonte de todas as perfeições, deve possuí-la em si supereminentemente : Plotino não hesita em reconhecê-lo.

1° O Uno é em primeiro lugar a própria perfeição, porque é a realização da suprema imanência, na operação ao mesmo tempo mais ativa e imutável. É, com efeito, plenamente independente perante qualquer outro ser; a existência recebeu-a de si e conserva-a por si, bastando-se plenamente a si mesmo na sua solidão; ele é a realização mais absoluta da identidade, eternamente idêntico a si mesmo. Mas esta estabilidade não é inação : o Uno é, ao contrário, a suprema Potência, não passiva como a Matéria, mas ativa, primeiro ato em ação contínua : ” É, diz Plotino, o poder de tudo; e se Ele não existe, nada existe, de tal sorte contudo que a sua atividade se orienta em primeiro lugar inteiramente para si mesmo e como que para a sua própria profundidade.

2° Podem também atribuir-se-lhe, em pormenor, todas as nossas perfeições uma vez que se purifiquem de todos os elementos incompatíveis com a sua absoluta simplicidade e transcendência supereminente. Consequentemente :

a) Deus é pensamento, mas puramente intuitivo, sem distinção alguma entre sujeito e objeto nem multiplicidade de operações. É também consciência, porque nada ignora acerca de si mesmo. Mas por causa da absoluta simplicidade de seu objeto, o ato de pensamento é de preferência um simples contato inefável.

b) Deus é querer e vontade, mas puramente imanente. Compraz-se em si mesmo, quere-se a si mesmo, sendo belo e bom em si e por si; as suas tendências são todas íntimas, nenhuma delas é para um fim ou bem exterior ou melhor.

c) Deus é liberdade ou melhor, ato livre subsistente. Não

possui uma essência escrava, visto que é o primeiro; não depende de ninguém e recebeu unicamente de si mesmo toda a sua realidade e atividade.

d) Deus é a vida feliz enfim, mas absolutamente simples e imutável.

B) Teologia negativa.

126. — Mas segundo Plotino, é mais exato ainda negar em Deus não só toda a imperfeição, mas também todas as perfeições positivas expressas nos nossos conceitos : estes, com efeito, determinam e assim limitam essas perfeições; introduzem nelas certa composição ou dualidade tornando-as indignas da simplicidade e da transcendência do Uno. Consequentemente :

a) Deus não possui pensamento algum nem consciência, no sentido de que todo o ato de inteligência supõe essencialmente a dualidade de sujeito cognoscente e de objeto conhecido. ” Se um ser possui consciência, diz Plotino, é para se unir a si mesmo por esse ato; se ele se conhece, é porque se ignorava a si mesmo “.

b) Deus não possui querer algum ou vontade, no sentido de que esses atos supõem um bem exterior para que tendem e sucessão de operações.

c) Deus não possui a vida, no sentido de que esta exige movimento. Mas se não está em movimento, também não está em repouso em sentido próprio, o que suporia nele um sujeito distinto que recebe a forma de estabilidade, de sorte que perderia a sua plena simplicidade.

d) Deus nem sequer é o ser na sua suprema indeterminação; porque, para Plotino, o ser implica essencialmente pluralidade : designa uma essência já especificada, uma das Ideias do mundo platônico, distinta das outras, e, por isso, implica não-ser ” O próprio nome de Uno, acrescenta Plotino, não exprime outra coisa além da negação de pluralidade “.

Esta teologia negativa não é mais que um corolário do princípio fundamental : Sendo Deus o Primeiro, a Fonte de toda a realidade, e sendo a causa melhor que o seu efeito, distingue-se de tudo mais pelo fato de possuir perfeição mais alta; seria diminuí-lo, atribuir-lhe alguma perfeição comum aos outros seres. ” O Uno, diz Plotino, não faz número com qualquer outra coisa; é medida, e não medido : apenas se pode dizer que é o Além. Dizemos o que não é, não dizemos o que é”. Numa palavra, é o Inefável, o Indeterminado, o Transcendente.

127. — Estas concepções não se afastam muito da teoria tomista segundo a qual não conhecemos Deus naturalmente senão mediante ideias análogas que exprimem perfeições puras, em que se considera um duplo aspecto : por um lado, essas ideias dão-nos real conhecimento da substância divina que significam no sentido próprio, de sorte que os diversos atributos de Deus não são sinónimos; mas por outro lado, esse conhecimento é de tal modo imperfeito, inadequado, que esses atributos só têm valor puramente negativo para significar a essência ou o modo de ser próprio de Deus : ” De Deo, diz também São Tomás, scire non possumus quid sit, sed solum quid non sit “.

Mas Plotino leva tão longe o método negativo que se pode acusar, não sem razão, de agnosticismo, porque ensinava a impossibilidade radical de os nossos conceitos poderem exprimir positivamente alguma coisa sobre o ser de Deus. Mas esta crítica parte do princípio de que o único meio natural de atingir Deus é a razão abstrativa; Plotino, ao contrário, põe acima dos conceitos, não só a intuição, mas uma forma de conhecimento proporcionado à visão de Deus : o êxtase : no êxtase, Deus não é incognoscível, mas permanece inexprimível em palavras e em conceitos. Graças a esta distinção, as duas teologias não são inconciliáveis.

C) A emanação.

128. — Segundo a teoria fundamental, sendo Deus a perfeição suprema, é também o Princípio mais fecundo. Produz, com efeito, uma realidade distinta de si : a Inteligência, que dimana da sua substância ao mesmo tempo livremente e necessariamente.

a) Livremente : porque o Uno, na sua plenitude, não tem necessidade deste novo ser. Produ-lo sem se empobrecer, sem nada perder ou ganhar, isto é, em absoluta independência e liberdade. Aliás, age com inteligência, consciência e vontade ná medida em que a Teologia positiva lhe reconheceu essas perfeições.

b) Necessariamente : porque sendo o Uno imutável, diz Plotino, ” se há um segundo termo depois dele, forçoso é que exista sem que o Uno se mova, sem que se incline, sem que o queira e, numa palavra, sem movimento algum. De que maneira então? Que se há-de conceber à sua volta, se permanece imóvel? Uma irradiação que procede dele, dele que permanece imóvel, como a luz resplandecente que cerca o sol, dele nasce, ainda que ele permaneça sempre imóvel ” ‘. Ora este modo de ação é natural e necessário.

É aliás essencial a todo o ser perfeito manifestar a sua plenitude produzindo um efeito à sua imagem. Esta emanação não é por assim dizer senão um aspecto da perfeição do Uno, tão necessária como ele.