A questão do ser no Sofista de Platão [Boutot, 1987]

Deve notar-se que a (questão do ser->Seinsfrage), tal como colocada no Sofista, não é uma questão adventícia, mas central para a economia deste Diálogo. Este fato já é indicado pelo subtítulo que a Tradição conservou para este Diálogo: Peri tou ontos, Sobre o Ser. Mas é também isso que uma breve análise do seu conteúdo pode revelar. Estamos em presença, no Sofista, de dois temas essenciais: o problema da definição do sofista sobre o qual se abre o Diálogo, por um lado, e o problema do ser e da sua relação com o não-ser, por outro. Estes dois temas não são obviamente independentes: o primeiro introduz o segundo, que por sua vez ajuda a resolver o enigma contido no primeiro. Platão começa por propor várias definições possíveis dessa estranha e polimorfa personagem que é o sofista, mas uma delas, que o apresenta como um “fabricante de simulacros”, e mais precisamente como um “fabricante de imagens (eidolopoios)”1, levá-lo-á a interrogar-se sobre o problema do ser. De fato, na imagem (eidolon), quer se trate de uma cópia fiel da realidade (eikon) ou de um simulacro enganador (phantasma) e, mais geralmente, no falso (pseudos), algo que não é verdadeiramente dá a si mesmo a aparência de ser. Há aqui um entrelaçamento (symploke) de ser e não-ser que parece, no mínimo, estranho e absurdo (atopos)2 pois parece impossível, à primeira vista, unir ser e não-ser sem contradição: se o não-ser é, então, de fato, não é não-ser. No entanto, é este estranho entrelaçamento que deve ser explicado se quisermos estabelecer a possibilidade do discurso falso em geral, e do discurso sofista em particular, uma vez que ambos afirmam precisamente que o que não é é, ou que o que é não é. Platão vai assim mostrar que a comunidade do ser e do não-ser, longe de ser absurda, é inteiramente concebível, na condição, porém, de que o não-ser não seja (29) considerado como o oposto (enantion), mas como o outro (heteron)3 do ser. A introdução da noção de alteridade e a posição do não-ser como o outro do ser permitem então dar conta da possibilidade do discurso sofístico e, mais geralmente, do erro: o sofista não está a dizer o não-ser puro e simples, o que é impossível, uma vez que todo o discurso é discurso sobre algo, mas algo diferente do que é. A discussão do problema do ser e da sua relação com o não-ser desempenha assim um papel essencial no Sofista. Ao concluir que é possível e mesmo necessário atribuir um certo ser ao não-ser, permite explicar a “realidade” da atividade fantasmática da sofística e, ao mesmo tempo, dar uma resposta satisfatória, fundamentada e, portanto, irrefutável ao problema da definição do sofista que abre o Diálogo.


A questão do ser, tal como é colocada por Platão no Sofista (35), tem dois aspectos. Em primeiro lugar, há um aspecto “denotativo”, em que a questão é “o que são os entes”, ou seja, quais são as realidades às quais se aplica o nome “ser”. Este aspecto aparece pela primeira vez no curso do Sofista com esta afirmação do Estrangeiro, que abre a discussão do problema do ser: “Foi sem procurar muitas maneiras de o fazer, diz o Estrangeiro, que na minha opinião Parménides nos entreteve, ele, e quem com ele embarcou nesta empresa de determinar quantos (πόσα) são os entes (ὄντα), e o que (ποῖα) eles são”4. O Estrangeiro preocupa-se aqui com o número (πόσα) e a natureza (ποῖα) dos entes, interroga-se, por assim dizer, sobre os referentes da palavra “ser”, sobre as realidades que esta palavra denota. Mas o Estrangeiro interroga-se também sobre o sentido da palavra “ser”, como se pode ver pelo pedido que faz um pouco mais adiante aos seus interlocutores: “Uma vez que falhámos nisto, cabe-vos a vós mostrar-nos claramente o que entendeis (σημαίνειν) por esta palavra ‘ser’”5. O objetivo aqui já não é enumerar os diferentes tipos de ser, mas determinar o que significa “ser”. Este é o segundo aspecto da questão do ser no Sofista, o seu aspecto “conotativo”, o único que Heidegger efetivamente assinala em Sein und Zeit. Estes dois aspectos da questão do ser não são obviamente alheios, no Sofista, uma vez que é a enumeração dos entes que deve, em princípio, permitir-nos compreender o que significa o ser. Por outras palavras, é a resposta à questão da denotação — “o que é o ser?” — que deve fornecer uma resposta à questão da conotação — “o que significa ser? Note-se que a abordagem de Platão, que pode parecer circular na medida em que, para podermos nomear os entes, temos de saber já o que significa “ser6, é de certa forma oposta à adotada por Aristóteles no Livro Z da Metafísica. Neste livro, Aristóteles coloca a questão do ser (οὐσία) e, tal como Platão, distingue duas séries de problemas. Primeiro, interroga-se sobre a “denotação” ou “extensão” do conceito de ser e pergunta, em Z 2: τίνες είσίν οὐσία!!!, que entes existem7? Mas ele também se interroga sobre a “conotação” ou “compreensão” desse conceito, como evidencia a pergunta que formula já no primeiro capítulo (36) do Livro Z: τις ἡ οὐσία, o que é o ser8? No entanto, ao contrário de Platão, Aristóteles coloca o problema da conotação antes do da denotação: é a análise do “que é o ser” que deve permitir determinar “isto que é o ser”. “Que entes (οὐσίαι) existem?”, pergunta Aristóteles, com efeito, existem ou não existem entes para além dos entes sensíveis? Como é que os próprios entes sensíveis existem? Existe um ser separado e, se existe, porquê e como? Ou não existe um ser distinto dos entes sensíveis? É isto que temos de examinar, depois de termos delineado primeiro o que é o ser9. A nomeação dos entes pressupõe a determinação prévia do que é o ser, do que significa “ser”: a resposta à questão da extensão do conceito de ser, para Aristóteles, exige primeiro uma análise da sua compreensão.

Mesmo que, como acabámos de ver, Heidegger atribua a Platão o mérito de ter colocado, no Sofista, a questão do ser, ou mais precisamente a questão do sentido do ser, devemos, no entanto, notar que esta questão permanece neste Diálogo sem uma resposta explícita10. De fato, para o perceber, basta referir o modo como a discussão do problema do ser se desenrola e as conclusões, para dizer o mínimo, “negativas” a que conduz.

(BOUTOT, A. Heidegger et Platon: Le problème du nihilisme. Paris: PUF, 1987)


  1. Sofista, 235 a sqq.; cf. também 239 d 3. 

  2. Ibid., 240 c 2. 

  3. Ibid., 257 b 4. 

  4. Sofista, 242 c 4-6.  

  5. Ibid., 244 a 4-6. 

  6. Esta circularidade pode ser mais aparente do que real, uma vez que se trata de tornar explícito um conhecimento que inicialmente é apenas implícito 

  7. Z 2, 1028 b 28. 

  8. Z 1, 1028 6 4. 

  9. Z 2, 1028 6 28-32. 

  10. Mesmo que não haja uma resposta explícita à questão do sentido do ser no Sofista, o fato é que uma determinada compreensão do ser está aí em ação, embora apenas implicitamente. A tarefa de Heidegger, como veremos, é precisamente tornar explícito esse implícito, pondo em evidência o horizonte (da presença) a partir do qual o ser é aí compreendido. 

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