Plotino – Tratado 53,1 (I, 1, 1) — Qual é o sujeito da sensação?

nossa tradução

desde MacKenna

1. Prazer [hedone] e angústia [lype], medo [phobos] e coragem [tharre, andreia], desejo [epithymia] e aversão [apostrophe], onde estas afetividades e experiências se assentam? Claramente, somente na alma [psyche], ou na alma no emprego do corpo [soma], ou em alguma terceira entidade derivando de ambos. Para esta terceira entidade, consequentemente, existem dois modos possíveis: poderia ser uma combinação ou uma forma distinta devida à combinação. E o que se aplica às afetividades [pathos] se aplica também aos atos, físicos ou mentais, que delas brotam. Temos, portanto, que examinar a razão-discursiva [dianoia] e a ação mental ordinária [doxa] sobre objetos dos sentidos [pathe], e investigarmos se estas têm seu assento com as afetividades e experiências, ou talvez algumas vezes este assento, outras vezes outro. E devemos considerar também nossos atos de intelecção [noesis], o modo deles e o assento deles. E este princípio investigativo, que investiga e decide nestas matérias, deve ser levado à luz. Primeiramente, qual o assento da percepção-dos-sentidos [aisthanesthai tinos]? Este é obviamente o início posto que as afetividades e as experiências [aisthesis] são ou sensações de alguma espécie ou, pelo menos, nunca ocorrem aparte da sensação.


desde Aubry

Qual é o sujeito das paixões?

Três hipóteses.

Os prazeres [hedone] e as aflições [lype], os temores [phobos] e as audácias [tharre], os desejos [epithyme] e as aversões [apostrophe], e o sofrimento [algein tinos], a quem se deve atribuí-los? Pode ser à alma [psyche], ou à alma usando do corpo [soma], ou a uma terceira coisa composta da alma e do corpo. 1 Ora esta por sua vez pode se entender de duas maneiras: ou bem como a mistura da alma e do corpo, ou bem como uma outra coisa, distinta, disto resultando. 2

Mesma questão para a opinião (doxa) e a reflexão (dianoia)…

A mesma questão se coloca para o que resulta destas paixões 3, quer se trate de atos ou de opiniões. Nossa investigação deve portanto conduzir-se também sobre a reflexão 4 e sobre a opinião: pertencem elas ao mesmo sujeito que as paixões ou assim acontece para algumas, diferentemente para outras?

… os atos intelectuais (noéseis [noesis])… Devemos também considera os atos intelectuais, ver como eles advêm e a quem eles pertencem 5

… a investigação filosófica [philosophia]… e enfim, certamente, este mesmo que investiga, que examina e lança estas questões: que pode ele ser de fato? 6

… a sensação [aisthesis] E a princípio, o ato de sentir, a quem pertence ele? É por aí que convém começar posto que as paixões, ou bem são uma espécie de sensação, ou bem não podem ser sem as sensações.7


desde Bréhier

1. A que sujeito pertencem prazer e dor, medo e confiança, desejo e aversão? A alma? A alma usando o corpo? A um terceiro ser composto da alma e do corpo? E esta última questão se desdobra – é a mistura ele mesma? É a uma coisa diferente resultante da mistura? As mesmas questões se colocam para as ações e as opiniões que resultam destas paixões. Para as reflexões e as opiniões, deve-se investigar se todas ou somente algumas dentre elas pertencem ao mesmo sujeito que as paixões. Ainda é necessário considerar a natureza dos atos da inteligência e o sujeito ao qual pertencem; enfim, é preciso ver o que é esta parte de nós mesmos que faz este exame, coloca todas estas questões e as resolve.

É por aí que convém começar, já que as paixões são sensações ou, pelo menos, não existem sem estas.

Igal

Bréhier

Guthrie

MacKenna


COMENTÁRIOS

Aubry

O primeiro parágrafo do Tratado 53 tem algo de confuso: se ele anuncia o plano do tratado, é sob a forma, enganosa, de uma investigação sobre as faculdades [dynamis]; Plotino passa em revista, segundo uma ordem que se reconhece hierárquica, uma multiplicidade de estados e de operações para perguntar qual é o sujeito [hypokeimenon]. Ora esta investigação não chaga à determinação de um único sujeito de atribuição. A multiplicidade [plethos] primeira não é portanto reduzida senão a distribuída entre três sujeitos possíveis: a alma [psyche], a alma usando do corpo [soma], ou “uma terceira coisa composta da alma e do corpo”. É sobre estes, em verdade, e sobre a validade das fórmulas que os designam, que a investigação vai tomar lugar: será preciso determinar quais, entre eles, podem contar como substâncias, e de que natureza.

É por uma litania das paixões [pathos] que se abre o tratado. Há uma enumeração escolar, mas também retórica: as paixões são elencadas por pares de opostos, prazeres [hedone] e aflições [lype], temores [phobos] e audácias [tharre], desejos [epithymia] e aversões [apostrophe], onde todas vêm a se resumir em um termo único: o sofrimento [algein tinos], como se este fosse a chave. Faz lembrar o Timeu, e a descrição, pelo demiurgo [demiourgos], das modificações suscitadas na alma por sua “implantação” no corpo; mais adiante, no entanto, no mesmo texto, as paixões serão apresentadas como componentes da “alma mortal” (69d). Tal lista se encontra também no Filebo, onde “cólera, temor, remorso, luto, amor, ciúme, inveja e outras afecções deste gênero” são designadas como “dores da alma só” (47e). Aristóteles, enfim, quando evoca estas paixões, delas fala como atributos comuns à alma e ao corpo (De Anima, I,1, 403a7). A questão do sujeito das paixões parece então ditada pelas incertezas e as divergências da tradição. E é, de novo, através de termos de empréstimo que Plotino vai formulá-la; ele distingue com efeito três sujeitos possíveis: “a alma”, “a alma usando do corpo”, ou “uma terceira coisa composta da alma e do corpo”, esta última podendo ser “a mistura” [krasis] ela mesma ou uma entidade nova dela resultando. Esta tripartição lembra o Primeiro Alcibíades que, para a questão “o que é o homem [anthropos]?” propunha três respostas: “a alma, o corpo, o o todo formado da alma e do corpo” (130a-b). Mas mesmo fazendo lhe fazendo eco, Plotino põe estas três hipóteses a serviço de uma questão que não é aquela de Platão. Se coloca assim, de pronto, o problema da relação do Tratado-53 ao Primeiro Alcibíades: viu-se que para Porfírio, o editor das Enéadas, assim como para a tradição neoplatônica, os dois textos exerciam a mesma função, propedêutica, iniciática, e isto enquanto eram todos os dois regidos pelo preceito délfico do “Conhece-te a ti mesmo” [gnothi seauton]. E, de fato, o Alcibíades transparece imediatamente sob as primeiras linhas de nosso tratado: porque então Plotino transpõe a questão diretora? Como compreender que para a questão da essência do homem ele a substitua por aquela do sujeito das paixões? [AUBRY]


Depois do sujeito das paixões [pathos], é o sujeito da opinião (doxa) e da reflexão (dianoia), depois o dos atos intelectuais (noêseis) que se questiona. O primeiro será discutido nos § 7 e 9, o segundo no § 2 e, indiretamente, nos § 8 a 11. No entanto, e novamente, essa linearidade é enganosa: por um lado, porque, como vimos, o tratado , em seu primeiro momento, é regido, muito mais do que pela recensão graduada das faculdades [dynamis], pela triplicidade dos assuntos entre os quais estes se distribuem, e por uma interrogação sobre o caráter substancial destes; por outro lado, porque, em seu segundo momento, a questão do sujeito [hypokeimenon] substitui a da substância [ousia]. É assim que a dianoia não aparecerá simplesmente como atributo do sujeito (o hemeis, ou “o nós”), mas como sua operação definicional, e isso na medida em que, precisamente, este sujeito não é uma substância, não existe como um substrato independente das atividades que realiza. Da mesma forma, procuraremos muito menos determinar o sujeito do pensamento (a alma separada que, por sua vez, é de fato uma substância, simples e totalmente atual), do que determinar em que condições o hemeis pode se identificar para este.

Assim, e de novo, a questão da atribuição é apenas uma questão de fachada: não será tanto uma questão de saber a que sujeito essas diferentes faculdades devem ser atribuídas, mas de saber em que condições o sujeito pode exercê-las, sabendo que esta atividade determina sua identidade. Se, na primeira parte do tratado, a questão da atribuição mascara uma questão de ordem sobretudo ontológica sobre a substancialidade, na segunda parte ela esconde uma questão prática de identidade.

Armstrong

  1. As três possibilidades enumeradas aqui ecoam o Primeiro Alcibíades de Platão: o homem pode ser a alma, o corpo, ou o todo formado de uma e do outro (130a). Ver também a questão inicial do De Anima de Aristóteles (I, 1, 402a9-10), que visa distinguir os atributos próprios à alma daqueles que pertencem ao animal inteiro.[]
  2. Cf. Platão, Timeu, 35a. A mistura (aqui migma) pode não ser senão a adição das partes constitutivas ou dar nascimento a uma nova substância.[]
  3. pragmata é aqui sinônimo de pathe. Aristóteles, no De anima, emprega estes dois termos indiferentemente, por oposição a ergon e a energeia para designar todo estado passivo (cf. I,1,403a10).[]
  4. É o termo dianoia que traduzo por “reflexão”, de maneira a marcar a ligação que estabelece Plotino entre o raciocínio discursivo e a consciência (cf. Tratado-49). O plano do tratado continua a se enunciar: ver §7 e §9.[]
  5. Traduzo noeseis por atos intelectuais, de maneira a fazer entender a raiz “noûs” (intelecto) e a sublinhar o caráter eminentemente ativo, e atual, da alma à qual é atribuída o puro pensamento. Ver o parágrafo seguinte, assim como os §8 e 9.[]
  6. Notar a singularidade desta questão reflexiva. Encontra-se a mesma virada no Tratado 27,1,11 ; ver também Tratado 10,1,30. Resposta no §13.[]
  7. Cf. Aristóteles, De anima, I,1,403a7; ver §2, 25-27 e §5.[]
  8. Esta distinción obedece a que hay pseudo razonamientos (9, 8-9; cf. 9, 18-22) y pseudo opiniones (III 6, 4, 18-21), que son más propios del compuesto que del alma.[]
  9. This most direct translation of “pathos,” is defective in that it means rather an experience, a passive state, or modification of the soul. It is a Stoic term.[]
  10. Dianoia” is derived from “dia nou,” and indicates that the discursive thought is exercised “by means of the intelligence,” [noûs] receiving its notions, and developing them by ratiocination, see V, 3, 3. It is the actualization of discursive reason “to dianoetikon,” or of the reasonable soul (“psyche logike”), which conceives, judges, and reasons (dianoei, krinei, logizetai).[]
  11. “Noesis” means intuitive thought, the actualization of intelligence.[]
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