É portanto mais exato dizer que o Uno é sem forma (aneideon) que dizer que ele tem uma forma. Ele não é portanto substância (ousia), não é determinado, não se o apreende como algo, pois se se pudesse fazê-lo ele não seria mais princípio, mas somente um «isto». Ele está além de tudo, além do ser. Ele não tem nome, é somente um «não isto». Para alcançá-lo, é preciso superar não somente todo o sensível, mas também todo o inteligível. O inteligível não ensina que ele é, mas não quem ele é. Daí o paradoxo de falar do Uno: fala-se disto que não é dizível e nomeia-se o que não é nomeável. De fato este nome Uno significa tão somente a negação de toda multiplicidade: é de certo modo um nome negativo, dizendo o que o Uno não é, sem dizer o que é. Mas este nome Uno que exprime a simplicidade absoluta deve ser negado ele também, pois ele não nos mostra de todo a natureza do Uno. Se é possível de perceber o Uno é impossível de conhecer sua forma (eidos) (Eneada-V, 5, 6).
Schäfer
Uno, o (hen); um/muitos
O problema da relação entre um (hen, henas, monas) e muitos (plêthos, polia, pleon, hathroon) é uma das questões fundamentais da filosofia platônica e, ao mesmo tempo, talvez seja a mais difícil de resolver (Tim. 68d). O conceito do um ou da unidade abarca um grande espectro de modos de uso: ele funciona como numeral (usado enfaticamente) e princípio de número e medida, unidades conceituais lógicas, unidades de entidades, determinações ou estados de coisas, como indivíduos delimitáveis, concretamente determinados, unidades (sintéticas) complexas de partes ou como totalidades (Rep. 441c), como unidade pura que rejeita toda multiplicidade, como identidade do que permanece igual a si mesmo (Fedro 275d) ou como coisa contínua (divisível e indivisível); a unidade é também uma condição indispensável, universal do conhecimento possível e do pensamento sistemático. (SCHÄFER)
Ullmann
O Uno – princípio ontológico ou primeira hipóstase
Do Uno, que não é abstração, mas realidade viva, isto é, Deus ou Absoluto, procedem, derivam, provêm todos os entes. E a primeira hipóstase ou Princípio supremo. Os entes, pois, existem, por participarem do Uno, que é simples, conforme o expressa Plotino: “Com efeito, se não fora simples, sem acidentalidade e composição e realmente Uno, não seria princípio; mas, por ser simples, ele é de todo independente (autarkéstaton) e anterior a tudo (prôton pántôn). Há uma relação de dependência unilateral, isto é, as coisas dependem do Uno e não este daquelas.
Para Plotino, como para todos os filósofos gregos, era uma questão crucial a origem do sensível a partir de um princípio imaterial.
“A natureza do Uno é geradora de todas as coisas, razão por que não é nenhuma delas”. Sendo o Uno nenhuma das coisas, ele é transcendente a toda determinação, sem essência. Isso quer dizer que não se assemelha a nenhuma essência dos entes; ele é a essência par excellence.
Como pode, então, o intelecto humano conhecer essa realidade tão remota? Entre outros argumentos, Plotino recorre a um postulado, a um a priori.
Não admira, portanto, que o conhecimento que temos do Uno seja apofático (vide nosso apophasia), negativo: “Nós logramos dizer o que ele não é, o que ele é não podemos dizê-lo; a partir do que é depois dele é que nos exprimimos relativamente a ele”. Logo, além de falarmos do Uno negativamente, falamos dele também regressivamente, indo dos efeitos para a causa, a qual não pode ser circunscrita, por não ter limites, por ser infinita.
Ao mesmo passo, o Uno é Superinteligência, Super-Ser e causa sui, isto é, o Uno é o que quer ser, porque é perfeito. Se ele (Uno) pudesse ser diverso do que é, “ele não seria capaz de permanecer na sua perfeição”. É igualmente dotado de vontade. À essência do Uno pertence a vontade. Nada teria sido criado por ele, se antes não existira a vontade de criar.
Elevando-se acima de todo o ser (epékeina tês ousías), o Uno não se isola dos seres como tais. “Ele não é nenhum dos entes, e contudo ele é todos ao mesmo tempo; não é nenhum deles, porque são posteriores a ele; é todos, porque são derivados dele. Ele tem o poder de produzir todos (…) (Eneada-VI). Em outras palavras, ele é dynamis tôn pántôn (Eneada-III, 8, 10). Essa produção ou emanatio não se diferencia, essencialmente, da noção cristã de creare ex nihilo, conquanto haja diferenças nalguns pontos: processão sucessiva e mediadora do Noûs e da Alma do mundo para o surgimento dos seres e eternidade do mundo. Porém, a excelsitude do Uno fica resguardada: “O Bem é a causa de todas as coisas, sem se misturar com elas; ele está acima de todas as coisas”. Não era desconhecida de Plotino a doutrina criacionista, devido ao seu convívio com Amônio Saccas. Esse fato, sem dúvida, terá influído na complexa síntese do seu pensamento, elaborado, em grande parte, na cidade de Roma, onde teve diuturno contato com o cristianismo. Ao menos pela rama o licopolitano conhecia a doutrina cristã.
Se o Uno ficasse recolhido num solipsismo total, nada existiria. Sua dynamis deu origem a tudo. Dynamis não tem o sentido de receptividade da potência aristotélica, mas significa capacidade de produzir, de criar, sem sofrer diminuição nem evoluir para maior perfeição.
Dessarte, o Uno, realidade subsistente em si mesma, constitui a primeira hipóstase e é fonte de toda a determinação, ou seja, ele contém tudo eminenter ou potentialiter, e não actualiter.
“Plotino, um estudo das Enéadas”, de R. A. Ullmann