Em sua viagem ficcional às Ilhas dos Bem-aventurados, Luciano de Samósata narra ter encontrado as almas de todos os filósofos do passado, com a exceção de Platão: “somente Platão não estava: segundo as vozes que circulavam por lá, ele estaria morando na cidade que havia inventado para si, onde vivia conforme as leis e a constituição que ele mesmo havia escrito” (Vera historia II, 17).
A ironia de Luciano deixa transparecer, pelo revés do tecido narrativo cômico, a excepcionalidade do lugar de Platão no interior de toda a tradição filosófica: a condenação à solidão em sua cidade idealmente perfeita é o espelho da radicalidade com que Platão enfrentou o tema da política. Proposta esta, que, de certa forma, é percebida desde a Antiguidade como dificilmente compartilhável pela filosofia política, por assim dizer, normal. Platão chega ao ponto de repensar, a partir da percepção da grave doença da qual estava acometida a cidade (não somente Atenas, não somente a cidade antiga), todos os âmbitos da reflexão filosófica. A psicologia e a antropologia, de um lado, a epistemologia e a ontologia, de outro, concorrem conjuntamente para redefinir um arcabouço teorético em que a cura da cidade possa se tornar algo possível, ainda que difícil (cf. Rep. V, 499d). Pois radicalidade, em Platão como em todos os bons filósofos ao longo da história, não significa ingenuidade, obviamente: a cura que Platão propõe, de forma muito mais realista do que se quer normalmente admitir, faz as contas com o ser humano como ele é. Ou melhor, como Platão o descobre em sua profunda e nuançada investigação psico-antropológica: um ser humano inclinado fundamentalmente para o desejo, e seu próprio interesse é o grande obstáculo para um projeto coletivo como o da kallipolis. A solução proposta por Platão é a de organizar, harmonizar a cidade e o ser humano desde seu interior, desenhando, com traços por vezes finos, por vezes mais grossos, uma divisão de funções que permita garantir organicidade tanto à alma como à cidade. Condição necessária para que este projeto funcione – dadas as condições antropológicas acima evidenciadas – é que haja um número limitado de sábios, de filósofos, nos quais a racionalidade, adequadamente alimentada pelo conhecimento do que é bom, justo e belo, possa prevalecer sobre as outras tendências humanas. Esses sábios guardiões, portanto, seriam os únicos qualificados para dirigir a complexa engenharia sociopolítica que viria a sustentar a cidade. Somente graças a esta hierarquia a cidade poderá resultar finalmente bela, porque justa e resistente às crises que inevitavelmente a esperam.