Não há que perder muitas palavras, no intuito de provar que entre o frg. 16 e o frg. 23 passava uma linha, dividindo uma parte negativa de uma parte positiva. O poema, ou o sector do poema, que teria por objecto «Deus e os deuses», preludiava, pela crítica ao politeísmo de Homero e Hesíodo, uma doutrina que dir-se-ia inédita, não soubéssemos o que depreender se pode, da «teologia» virtualmente contida na cosmologia milésia, tal como a conhecemos pela versão de Anaximandro. Mas, abstraindo por ora, da sua origem jônica, atentemos nas duas partes, precisamente como o que são: partes de um todo, cujo autor é uma figura tanto mais vincadamente histórica, quanto é certo haver sido o primeiro filósofo que ousou falar de si, antes ou enquanto falava de sua filosofia. No respeitante à primeira parte, o frg. 10 é fragmento de um fragmento; talvez as primeiras palavras encetem a expressão de um pensamento que se poderia completar assim: «Já que todos, desde o princípio, aprenderam com Homero (examinemos se o aprendido vale a pena o que pagaram pelo aprendizado).» Que a não vale, demonstra-se no frg. 11 pelas extremas consequências do antropomorfismo, cujas raízes aparecem nos três fragmentos seguintes (14-16). Xenófanes insinua habilmente a ideia de que o proveniente da ordem estética, que é a forma humana dos deuses, não se detém nas fronteiras da ordem ética e, por conseguinte, o poeta passará sem grande esforço de imaginação, da forma humana à demasiado humana índole dos deuses. Todo o poema se manteria dentro do horizonte da crítica ao antropomorfismo, dilatasse-o, embora, tanto quanto lho permitia a altura propícia à visão multiplicada, diversificada e enriquecida, das variantes do mesmo tema fundamental. Mas ao lado de Xenófanes corriam as águas de uma inestancável fonte de inspiração: o Indiferenciado de Anaximandro, ou de toda a escola de Mileto, proporcionava-lhe outro tema, este, agora, positivo. Do que os deuses não são, abre-se nova perspectiva para o que Deus é. Repare-se, antes de mais, que os dois temas se interseccionam no frg. 24: «Todo ele vê, todo ele pensa, todo ele ouve.» O primeiro tema ainda ressoa no sentido imediato de que possa haver quem creia na impossibilidade de existir quem veja, pense e ouça, sem órgãos adequados à visão, pensamento e audição; mas o segundo já se apresenta, entrecruzado com o primeiro, na significação mais subtil de que Deus vê como um Todo, pensa como um Todo, escuta como um Todo; e esse Todo já se nos revela, evidentemente, como Indiferenciado. Anaximandro associara ao seu theion periekhon («divino circundante») os epítetos de «imortal» e «incorruptível», e a imortalidade é, como se sabe, o único traço de desumanidade que resta aos demasiados humanos deuses de Homero e Hesíodo. É certo que Xenófanes, nos fragmentos que subsistem, não menciona semelhante traço, mas é difícil supor que o não tivesse negado, já que, no frg. 14, chama a atenção para a crença dos «mortais», de que teriam eles (os deuses) nascido, e portanto, não se vê como recusar-lhe o espírito da sentença, cuja letra possuímos numa cita de Aristóteles (Rhet., II, 23, 1399 b 5): «Tão ímpios são os que asseveram que os deuses nascem, como os que afirmam que eles morrem.» Por último, quanto aos frgs. 25 e 26, digamos que nada há que acrescentar ao inexcedível comentário de Jaeger (1952, 49-51): «aqui, Xenófanes critica de novo a representação homérica. Em Homero, a velocidade do movimento dos deuses está concebida como verdadeiro sinal do poder divino. Pelo contrário, Xenófanes requer que seu Deus seja imóvel, pois vê nisto um sinal da mais alta dignidade […]. Encontramo-nos de novo com a mesma intuição religiosa, nas estátuas e pinturas contemporâneas, que representam os deuses sentados em tronos, com toda a sua majestade, ainda que, como é natural, os artistas tivessem de expressar esta intuição em termos antropomórficos […]. Esta conjunção de omnipotência e repouso é de enorme importância para aplanar o caminho para a ideia de Deus, com que nos encontramos em anos posteriores […] no motor imóvel de Aristóteles, ideia que realmente tem sua origem aqui, em Xenófanes. A doutrina de Aristóteles procura tornar mais plausível esta nobre concepção da ação divina sobre o mundo, adotando a fórmula platônica kinei hos eromenon (‘move como coisa amada’: Met., XII, 7,1072 b 3).» (Eudoro de Sousa, “Horizonte e Complementaridade”)