Do Uno, que não é abstração, mas realidade viva, isto é, Deus ou Absoluto, procedem, derivam, provêm todos os entes. E a primeira hipóstase [Em Plotino, hypostasis pode significar a) fundamento, suporte, substância; b) algo que existe à parte; c) pessoa.] ou Princípio supremo. Os entes, pois, existem, por participarem do Uno, que é simples, conforme o expressa Plotino: “Com efeito, se não fora simples, sem acidentalidade e composição e realmente Uno, não seria princípio; mas, por ser simples, ele é de todo independente (autarkéstaton) e anterior a tudo (próton pántôn)” [En. V, 4, 1, 11-14]. Há uma relação de dependência unilateral, isto é, as coisas dependem do Uno e não este daquelas.

Para Plotino, como para todos os filósofos gregos, era uma questão crucial a origem do sensível a partir de um princípio imaterial.

“A natureza do Uno é geradora de todas as coisas, razão por que não é nenhuma delas” [En. VI, 9, 3, 40-41]. Sendo o Uno nenhuma das coisas, ele é transcendente a toda determinação, sem essência [Ao defrontar-se com o problema da processão – o Uno dando origem ao múltiplo Plotino reconhece as dificuldades e a gravidade do assunto. É significativo que aqui ele invoca a Deus, como que pedindo luz para lhe iluminar o intelecto no seu cometimento: “(…) invoque-se antes a Deus, não com a palavra, mas com a alma (…)” (En. V, 1,6, 9-10). Aliás, nas Enéadas, somente quatro vezes Plotino invoca a Deus: a) En. IV, 9, 4, 6-7; b) V, 8, 9, 13s; c) III, 7, 11, 6s; d) e na citação supra.]. Isso quer dizer que não se assemelha a nenhuma essência dos entes; ele é a essência par excellence.

Como pode, então, o intelecto humano conhecer essa realidade tão remota? Entre outros argumentos, Plotino recorre a um postulado, a um a priori [Em sua argumentação, na maioria dos casos, a respeito da existência do Uno, Plotino é dogmático, segundo revelam as suas palavras: ou dynatai = é impossível (En. V, 6, 3, 2): “é impossível existirem muitas coisas, se não existe o Uno”; dei = é preciso (En. VI, 9, 5, 25): ”é preciso que haja o Uno antes do Intelecto”; anánke (estí) = é necessário (En. VI, 13, 17): “se há o múltiplo, é necessário haver o Uno”. Também a fé (pístis), baseada na razão (lógos), representa um caminho para admitir a existência de Deus (En. VI, 9, 4, 31), sem falar da beleza deste mundo, que é um íchnos (vestígio) da Beleza suprema, da causalidade e da ordem no cosmo.].

Não admira, portanto, que o conhecimento que temos do Uno seja apofático, negativo: “Nós logramos dizer o que ele não é”, o que ele é não podemos dizê-lo; a partir do que é depois dele é que nos exprimimos relativamente a ele” [En. V, 14, 5-8]. Logo, além de falarmos do Uno negativamente, falamos dele também regressivamente, indo dos efeitos para a causa, a qual não pode ser circunscrita, por não ter limites, por ser infinita [Belíssimo é o pensamento de Plotino acerca da infinitude do Uno: “Deves concebê-lo (o Uno) também como infinito, não porque seja incomensurável em grandeza ou em número, mas por causa da não-imitação do poder. Se o pensas como espírito ou Deus, ele é ainda mais. Se o pensas como Uno, também então é mais do que possas imaginar (…)” (En. VI, 9, 6, 11-16).].

Ao mesmo passo, o Uno é Superinteligência, Super-Ser e causa sui [En. VI, 8, 20, 20s], isto é, o Uno é o que quer ser, porque é perfeito. Se ele (Uno) pudesse ser diverso do que é, “ele não seria capaz de permanecer na sua perfeição” [En. VI, 8, 21, 6]. É igualmente dotado de vontade. À essência do Uno pertence a vontade. Nada teria sido criado por ele, se antes não existira a vontade de criar.

Elevando-se acima de todo o ser (epékeina tès ousías), o Uno não se isola dos seres como tais. “Ele não é nenhum dos entes, e contudo ele é todos ao mesmo tempo; não é nenhum deles, porque são posteriores a ele; é todos, porque são derivados dele. Ele tem o poder de produzir todos (…)” [En. VI, 7, 32, 13-15]. Em outras palavras, ele é dynamis tôn pántôn [En. III, 8, 10, 1]. Essa produção ou emanatio não se diferencia, essencialmente, da noção cristã de creare ex nihilo, conquanto haja diferenças nalguns pontos: processão sucessiva e mediadora do Noûs e da Alma do mundo para o surgimento dos seres e eternidade do mundo. Porém, a excelsitude do Uno fica resguardada: “O Bem é a causa de todas as coisas, sem se misturar com elas; ele está acima de todas as coisas” [En. V, 5, 13, 35]. Não era desconhecida de Plotino a doutrina criacionista, devido ao seu convívio com Amônio Saccas [Na época de Plotino, a criação era expressa pelo substantivo grego poíêsis o qual deriva do verbo poiein. No Credo niceno-constantinopolitano. Deus criador é denominado Theòs poiôn, isto é, o criador fez tudo do nada. Ora, o Uno, archê de tudo. também não recorreu a matéria preexistente nem se depauperou ao dar origem às coisas.]. Esse fato, sem dúvida, terá influído na complexa síntese do seu pensamento, elaborado, em grande parte, na cidade de Roma, onde teve diuturno contato com o cristianismo [Indubitavelmente, Plotino conhecia os atributos dados pelos cristãos a Deus. Nas Enéadas encontram-se reflexos evidentes disso, v.g., quanto à criação consciente por parte do Uno. A esse respeito é elucidativo este comentário: “Rien d’inconscient ni d’inerte en l’Un. C’est en ‘pleine maîtrise de soi’ (En. VI, 8, 13, 10) qu’il produit” (TROUILLARD, Jean, Im procession plotinienne (Paris, 1935), p. 77). Cf. etiam En. V, 4, 4, 16-17). “II est donc difficile de croire que ce qu’il (l’Un) fait ou ce qui sort de sa puissance lui échappe de quelque façon que ce soit” (id., ibid., p. 79).]. Ao menos pela rama o licopolitano conhecia a doutrina cristã [“Notre philosophe (= Plotin), rappelons-Ie encore, n’a pas été initié à la vie intime des communantés chrétiennes; il les connaît du dehors et assez en gros” (GUITTON, Jean, Le temps et l’éternité chez Plotin et Saint Augustin, 4. éd. (Paris, 1971), p. 87).].

Se o Uno ficasse recolhido num solipsismo total, nada existiría [En. III, 8, 10, 2]. Sua dynamis deu origem a tudo. Dynamis não tem o sentido de receptividade da potência aristotélica, mas significa capacidade de produzir [En. III, 15, 33-35], de criar [Ao invés de aporrein, que ocorre raramente nas Enéadas, Plotino emprega, com frequência, os verbos poiein, hyphistanai ou hoion gennan (cf. En. V, 2. 1, 7s).], sem sofrer diminuição [“(…) a natureza do Uno é tal que (…) não diminui (elassoein) nas coisas que dele nascem” (En. VI, 9, 5, 36-38). Por essa razão, não é aceitável a qualificação de panteísmo atribuída por Eduard ZELLER a Plotino (cf. Philosophie der Griechen, 3. ed. (Leipzig, 1892-), p. 507-509).] nem evoluir para maior perfeição.

Dessarte, o Uno, realidade subsistente em si mesma, constitui a primeira hipóstase e é fonte de toda a determinação, ou seja, ele contém tudo eminenter ou potentialiter [[“(… the One) is a seed holding all things in potency” (ARMSTRONG, A. H., The Architectare of the intelligible Universe in the Philosophy of Plotinus (Amsterdam, 1967), p. 49).]], e não actualiter. [ULLMANN]