Excerto de CAEIRO, António de Castro. A arete como possibilidade extrema do humano. Fenomenologia da práxis em Platão e Aristóteles. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002, p. 27-31
A «excelência de cada coisa é arranjada e posta numa ordem [κόσμος – kósmos] através de uma estrutura organizativa [τάξις – táxis]». Quando uma excelência está presente, em virtude de uma ordenação, cada coisa obtém a possibilidade de se tornar autenticamente nela própria, isto é, de se realizar plenamente. Há uma excelência do artefacto (σκεύος), do corpo vivo (σῶμα), da existência humana (ψυχή), de todo o ente vivo (ζώον) que é estruturalmente a mesma, a despeito da heterogeneidade das entidades que possa constituir. Em cada ente reluz um mesmo είδος que se constitui não por acaso, mas pela presença de três elementos intrínsecos, a ordenação, a correcção e a capacidade de produção que é doada a cada um deles.
A partir de que base fenoménica podemos compreender o sentido daqueles enunciados? Quais são as estruturas elementares que temos de ter em mira para acompanhar em todas as suas dimensões o sentido da «excelência» de qualquer coisa? Como é que todos os entes podem tornar efectivas as potencialidades de que dispõem? Como é que cumprem, autêntica e genuinamente, as suas funções específicas? Qual é o sentido para a estrutura ontológica, cuja significação está encerrada nos termos «organização estruturalmente constituinte» (τάξις) e «ordenação constituinte» (κόσμος)? De que forma uma e a mesma estrutura pode «qualificar» do «mesmo modo» entes tão diferentes uns dos outros como, por exemplo, uma «casa» e a «alma humana»? O problema consiste em perceber a validade de uma enunciação que pretende abranger o conjunto das regiões dos entes no seu todo, a partir de uma concretização do seu sentido em cada ente, e sobretudo do sentido da «excelência humana». A tarefa fundamental a levar a cabo é o apuramento do modo como podemos experimentar a excelência humana como organização estruturante (τάξις). Isto é, de que forma se pode encontrar ou não uma concretização do sentido da «excelência» no humano, a partir da determinação «eidética» da «ordenação», da «ordem», da organização estrutural.
A fórmula «organizado estruturalmente e ordenado constitutivamente por uma organização estrutural constituinte» (τάξει τεταγμένον τε και κεκοσμημένον) traz à expressão a possibilidade de em cada ente, qualquer que ele seja, cada elemento particular que o constitui se adequar e adaptar a todos os outros. O modo, porém, como o sentido dessa ordenação se concretiza tem de ser necessariamente diferente de região de entes para região de entes. Consideremos, por exemplo, uma casa enquanto um ente da região dos apetrechos e do equipamento (σκευή). Uma casa é boa (χρηστή) se as suas partes forem bem organizadas estruturalmente (τάξις) e bem ordenadas constitutivamente (κόσμος) [ordem, boa disposição]. Uma casa, por outro lado, é má (μοχθηρά) se ficar aquém daqueles requisitos. É o que acontece se cada quarto e todos eles no seu conjunto estiverem por exemplo mal articulados (άταξία) ou forem demasiado pequenos. A casa é má se for pouco funcional. E a má funcionalidade da casa quer dizer, in extremis, ser inabitável. A estrutura organizativa que faz da casa uma boa casa manifesta-se no grau de habitabilidade que consegue alcançar, tendo como limite desvirtuador a possibilidade da inabitabilidade. A ordenação e o princípio organizativo que a fazem excelente está, assim, para além da própria casa na sua essência. Casa é tudo aquilo que, no mínimo, pode ser habitado. Uma casa excelente, no entanto, ultrapassa estas meras características. A sua excelência é determinada pelo bom desempenho das suas funções específicas.
O mesmo acontece para os outros entes tomados em linha de conta, o corpo próprio (σῶμα) e a lucidez humana (ψυχή). Nós dizemos que o corpo está em forma, em boa condição, em bom estado1, quando atinge certa ordem e boa disposição, as quais, por sua vez, se concretizam na saúde e na força ou na exponenciação dessas possibilidades. Podemos perceber que um corpo de boa saúde é uma condição necessária mas não suficiente para falarmos de um corpo excelente. O corpo de um atleta requer uma boa saúde. Mas a sua excelência radica no partido que tira dessa condição, no facto de usufruir de todas as possibilidades de que à partida dispõe. A excelência (άρετή) do corpo próprio (σῶμα) é apurável de uma forma espantosa, pela possibilidade de se tornar saudável, quando está em mau estado, ou então, na pior das hipóteses, quando está doente. A concretização do sentido da estrutura organizativa, de ordenação e arranjo das partes constitutivas não implica a «funcionalidade-disfuncionalidade» de um apetrecho (σκεύος), mas a saúde ou a doença do corpo humano. Um corpo doente não executa as possibilidades que lhe estão atribuídas, ou então apenas as realiza deficientemente. Anda, dorme ou come mal.
Para a tematização da vida2 — não apenas da humana mas de toda a sua forma de manifestação enquanto tal, de tudo quanto se gera —, é necessária a consideração do seu limite extremo, a morte ou qualquer outra forma de perecimento e destruição. O viver é o contrário do morrer como o acordar é o contrário do adormecer. Este pensamento de fundo procura apontar para o modo como, em geral, há uma articulação e uma tensão entre os limites que estão em causa. O viver (τό ζην) pode ser expressão de uma forma de excelência (άρετή) na medida em que é pensado como a força que permite a qualquer ente vivo não perecer ou destruir-se e continuar em vida. Permite-lhe sobre-viver. O sentido da τάξις é experimentado na manifestação da vida como a ordenação organizativa que constitui a aptidão e a disposição intrínsecas que fornecem a todo o ente vivo em geral a possibilidade de se agarrar à vida e de não perecer, permitindo-lhe viver o máximo de tempo possível. Em causa não está a qualificação da vida, se ela se processa em boas3 ou em más condições, mas tão-só a pura possibilidade de roubar sempre e continuamente um instante à morte, ao que impede, portanto, a continuação e a manutenção da vida. Viver doente do corpo ou da alma pode ser um mal. Mas a análise da excelência (αρετή) da vida neste nível de consideração pergunta só pela possibilidade de levar a morte de vencida, quaisquer que sejam as condições para essa persistência e insistência.
A tematização da lucidez humana (ψυχή), tendo em vista a τάξις, pode não se manter na neutralidade da qualidade da sua subsistência. A desordenação que a desvirtua e perverte é de uma natureza diferente da mera persistência em vida. Alguém em coma mantém-se em vida, não encontrou a morte, e, no entanto, não tem nenhuma relação com essa forma de subsistência. O seu préstimo (χρήσις) só se constitui quando ela atinge uma certa ordenação e uma certa disposição. Só que agora a concretização deste sentido geral da manifestação da excelência (αρετή) na lucidez humana (ψυχή) não pode ser determinada a partir da funcionalidade ou não de um determinado objecto de uso, nem do bom ou mau estado do corpo humano, apurado pela presença, respectivamente, da saúde e da doença, nem tão-pouco da sua manutenção em vida. A compreensão do sentido da excelência (αρετή) depende da presença da justificação e da justiça (δικαιοσύνη), da consciência tranquila (σωφροσύνη)4, da perseverança viril (ανδρεία) ou da santidade (δσιότης), ou, como veremos do fundamento requerido para a presença da excelência (αρετή) no homem, a possibilidade de se lhe expor, de ter em vista uma qualquer das suas manifestações. Essa possibilidade de exposição da excelência (άρετή) a si própria é trazida à expressão pelos termos saber (επιστήμη) ou consciência (φρόνησις). Como é possível que para todas as formas de manifestação e diferentes matizes da excelência (αρετή) haja um e o mesmo fundamento: a organização estrutural (τάξις) na lucidez humana (ψυχή)?
A própria linguagem natural permite-nos estabelecer as diferentes concretizações do sentido da «ordenação». Nós não dizemos, por exemplo, que uma casa está em «boa forma», mas dizemo-lo do nosso corpo. De uma casa dizemos que está em «bom estado». Uma boa casa e um corpo em boa forma são diferentes modos de concretização do sentido da «ordenação» que assiste à presença da «excelência» de cada ente. ↩
Os viventes não vêm à existência de nenhum outro modo a não ser a partir daqueles que estão mortos. ↩
Não podemos dizer que um animal que mata para sobreviver age mal, nem que todo o esforço gigantesco que leva a cabo para assegurar a subsistência das crias é excelente. ↩
Gór., 504d3. A tradução usual de σωφροσύνη é «temperança». Como teremos, porém, oportunidade de ver, este sentido é uma especificação daquela alma que tem ο φρήν posto a salvo e tranquilo. ↩