(Eudoro de Sousa, “Horizonte e Complementaridade”)
A filosofia, na Grécia, tem por certidão de nascimento um texto de Aristóteles repetidamente citado e minuciosamente comentado (Met., I, 3, 983 b 6 e segs.): «a maioria dos primeiros filósofos, acreditaram que os únicos princípios (arkhás) de todas as coisas (hápanta tà ónta) são os de índole material; pois aquilo de que constam todos os entes e é a primeira origem da sua geração e término de sua corrupção, permanecendo a substância, mudando, todavia, as determinações acidentais, é, conforme dizem, o elemento e o princípio dos entes. Por isso creem que nada se gera e nada se destrói, pensando que tal natureza (physeos) se conserva sempre […]. Mas quanto ao número e à espécie desses princípios, nem todos dizem o mesmo. Tales, que deu início a tal filosofia, afirma que é a água (por isso, também declarou que a Terra jaz sobre a água); e talvez (ísõs) concebesse esta opinião, observando que o alimento é sempre úmido e que até o calor nasce da umidade e dela vive (e aquilo de que as coisas nascem é o princípio de todas elas). Por isso, talvez haja concebido esta opinião; e também porque as sementes têm sempre uma natureza úmida e por ser a água, para as coisas úmidas, o princípio da sua natureza. Segundo alguns, também os primeiros autores de teogonias (prõtous theolo-gêsantas), muito antigos e anteriores a nós, tinham a mesma opinião acerca da natureza. Com efeito, fizeram do Oceano e de Tétis pais da geração (tês genéseos patéras)». Quem procure redescobrir nestas linhas o início da filosofia, advirta-se de que poderiam algumas ficar tranquilamente à margem de toda e qualquer preocupação, quanto à finalidade a atingir: o «talvez» que introduz o motivo pelo qual Tales de Mileto teria proposto a água como princípio assegurados de que as palavras seguintes exprimem uma hipótese — a mais plausível, na opinião de um filósofo, filho de médico, e autor de numerosos escritos de anatomia e embriologia. A água fora eleita por Tales, «talvez» porque «o alimento é sempre úmido», «porque as sementes têm sempre uma natureza úmida» e «por ser a água para as coisas úmidas o princípio de sua natureza». Mas, em verdade, Aristóteles não sabia porquê, nem quis dar-se por ciente do motivo pelo qual a água, no pensamento de Tales, é o princípio de tudo. Ainda assim, inclinamo-nos a não demitir precipitadamente a hipótese, pelo menos na medida em que ela se inclui, sem o menor esforço especulativo, na soma dos argumentos que a moderna historiografia acumulou, para garantir a veracidade e autenticidade de certos rótulos insistentemente apostos aos sistemas dos três filósofos de Mileto. Referimo-nos, é claro a «hilozoísmo», «panzoísmo», «pampsiquismo» e quantos mais pretendam designar a indistinção primordial de matéria, vida e consciência, frequentemente apontada como notável característica desses lances iniciais do pensamento ocidental, que mereceu a adjetivação de «filosófico».
A mesma reserva quanto à generalizada desconfiança que paira sobre a literatura doxográfica se impõe, ao lermos as últimas linhas do texto referido. É certo que, também aí, o filósofo reproduz a opinião de outros, sem assentimento ou dissentimento manifesto. Não há dúvida que ficamos sem saber se Aristóteles aprova ou não aprova a possibilidade de o primeiro Milésio haver transposto para o plano da especulação cosmológica a visão mitológica testemunhada por Homero; mas não é absurdo pensar que não a desaprovasse inteiramente, visto que noutro lugar do mesmo livro da Metafísica (982 b) afirma que, «de algum modo (põs), o philomythos se identifica com o philosophos». Conceda-se, todavia, que o ponto não é tão relevante quanto parece, ao verificarmos que nem tanta ênfase é deposta na identificação, mesmo restringida pelo mencionado advérbio, nem se encontram muitas passagens, em toda a imensa obra do filósofo, atestando que alguma vez ele tenha seriamente pensado na historiabilidade de um trânsito da mitologia para a filosofia, em qualquer estágio do seu desenvolvimento. O apelo à mitologia grega e, sobretudo, a seus antecedentes orientais caracteriza uma etapa muito mais recente, na afincada busca dos motivos que teriam levado Tales a proclamar que a água é o princípio de todas as coisas. Entre estes insere-se muito naturalmente o que Aristóteles não dá por hipótese sua: «por isso também declarou que a terra jaz sobre a água». Mas a água, considerada apenas como suporte da terra, que sobre ela flutuaria «à maneira de um lenho» (Arist., De caelo, II, 13, 294 a 28) ou «more navigium» (Sen., Nat. Quaest., III, 14), se, na intenção de apontar uma causa física dos terramotos, condiz com os demais informes que a Antiguidade nos transmitiu, acerca do primeiro Milésio — por exemplo, a previsão de um eclipse do Sol, a medida da distância de uma nave à costa ou da altura das pirâmides, o desvio do curso de um navio, a explicação das enchentes do Nilo —, certamente desdiz a justeza da atribuição a Tales da dignidade de filósofo, pois, quanto a essas «descobertas», nem cada uma de por si, nem todas em conjunto, apontam para além da limitada área em que se dispõe o receituário «pré-científico» de toda a comunidade cultural do Oriente mediterrâneo. Daí que, cingindo-nos ao espírito e à letra da notícia aristotélica, tenhamos, mais uma vez, de reconsiderar a hipótese de um trânsito da «filomitia» à «filosofia» — neste caso, mediante a cosmologia mesopotâmica (e egípcia) das águas primordiais, ou a diacosmese grega do Oceano. Na alternativa entre ciência e mito, onde se pretende inserir as origens de um pensamento que a posteridade entendeu apelidar de filosófico, a opção impõe-se por força de coerência interna: em todo o caso, recusamo-nos decididamente a admitir que um Tales interessado em explicações «científicas» não se antecipasse à objecção de Aristóteles, apercebendo-se de que a água, como suporte da terra, carecia, ela própria, de um suporte para si (Arist., De caelo, II, 13, 294 b 35).
Dir-se-ia, portanto, que o dilema «pró mito, contra ciência» ou «pró ciência, contra mito» não deixa lugar em que se fixe a origem da filosofia, como disciplina autónoma e autárquica, se, como o pretende Aristóteles, ele tem de ser ocupado por Tales de Mileto. Mas quem poderá deter-se à margem da impetuosa corrente tradicional? Se a bibliografia especializada, que o saibamos, só regista três nomes de historiadores da filosofia grega, vituperados pelo arrojo de recusar a Tales o justo título de filósofo (A. Döring, em 1877; E. Ch. Peithmann, em 1902; H. Cherniss, em 1936), estejamos certos de que a informação aristotélica e de toda a doxografia subsequente há-de ser paga a qualquer preço. No citado texto da Metafísica, há um «muito», do qual se tem escrito pouco, e um «pouco», do qual se escreveu de mais — isto referido, note-se, com particular atenção, o privilegiado lugar que se atribui a Tales, no limiar da filosofia ocidental. O «muito» consiste, em primeiro lugar, na conclusão das páginas de epistemologia que o precedem: a filosofia, em última análise, é investigação dos princípios. Agora, no seu breve escorço histórico, Aristóteles define «princípio» como «aquilo de que constam todos os entes e é a primeira origem de sua geração e término de sua corrupção». Isto já é muito, pois, embora a definição venha expressa em termos peculiares da Escola, não há motivos para que nos recusemos a admitir que semelhante ideia andasse longe da cogitação dos «físicos» da Jónia. «Donde emergem e aonde imergem os entes que nascem e morrem, donde vêm e para onde vão as coisas que se constroem e se destroem?», é pergunta que, nesses próprios termos, não desmerece de uma especulação incipiente, nem mesmo da mais evoluída: encontramo-la em todas as épocas, sob as mais diversas e complicadas formas. Sobre o muito que nos diz Aristóteles, nesta passagem da Metafísica, reincidiremos logo; mas importa dizer antes que, segundo nos parece, o «pouco» estaria na determinação do princípio como «água», caso esta não seja mais do que, no século iv, se entendia como um de entre os quatro elementos. O grande filósofo de Esta-giro, de tão preocupado em expor a sua doutrina das quatro causas, e encerrar os seus mais remotos antecessores, na estreita categoria da causalidade material, leva-nos quase irresistivelmente a supor que o mais importante, nessa primeira página de história, seja a menção da água-elementar, como princípio de tudo. Adivinhar, quando não pode saber de ciência certa, é um risco que o intérprete desafia, queira-o ou não. Pode ser que tal fosse, verdadeiramente, a intenção de Aristóteles; mas se o foi, ao mesmo tempo em que apontava a água, como a grande descoberta iniciadora do pensamento filosófico, deixou entrever que tanto ou mais relevante, como distintiva característica desse pensamento, é que ele arrancasse subitamente de hápanta tà ónta, isto é, da visão de «todas as coisas, em uma só» («em uma só», é o que se lê no prefixo colectivo ha-). E agora o que se pergunta a qualquer filósofo-historiador da filosofia é, precisamente, isto: que é o que mais importa, no concernente às origens da filosofia? Quanto a nós, não vemos por que e como hesitar, e respondemos deliberadamente: se Tales merece ser designado como o «primeiro filósofo», não é tanto porque declarasse que o princípio de tudo é a água, quanto por haver sido o primeiro a falar de tudo como de uma coisa só. Aqui nos deparamos novamente com o «muito» que está contido na afirmação aristotélica. Que mais nos poderia o filósofo ter dito das origens da filosofia?