A aurora dos “filosofos da natureza”

Função real e ordem cósmica estão já dissociadas em Hesíodo. O combate de Zeus contra Tifão para obter o título de rei dos deuses perdeu o significado cosmogônico. É necessária a ciência de um Cornford para despistar nos ventos que nascem do cadáver de Tifão aqueles que, entranhando-se no interior de Tiamat, separam o céu da terra. Inversamente, a narração da gênese do mundo descreve um processo natural, sem ligação com o rito. Apesar do esforço de delimitação conceitual que aí se manifesta, o pensamento de Hesíodo permanece no entanto mítico. Ouranos, Gaia, Pontos são na verdade realidades físicas, no seu aspecto concreto de céu, de terra, de mar; mas, são ao mesmo tempo forças divinas cuja ação é análoga à dos homens. A lógica do mito repousa nesta ambiguidade: operando sobre dois planos, o pensamento apreende o mesmo fenômeno, por exemplo, a separação da terra das águas, simultaneamente como fato natural no mundo visível e como geração divina no tempo primordial. Entre os milésios, pelo contrário, nota Cornford segundo W. Jaeger1, Okeanos e Gaia despojaram-se de todo aspecto antropomórfico para se tornarem pura e simplesmente a água e a terra. Sob esta forma, a observação é um tanto sumária. Os elementos dos milésios não são personagens míticas como Gaia, mas não são tampouco realidades concretas como a terra. São a um tempo “forças” eternamente ativas, divinas e naturais. A inovação mental consiste no fato de estas forças serem estritamente delimitadas e abstratamente concebidas: limitam-se a produzir um efeito físico determinado, e este efeito é uma qualidade geral abstrata. Em seu lugar, ou sob o nome de terra e de fogo, os milésios põem as qualidades de seco e de quente, substantificadas e objetivadas, pelo novo emprego do artigo o quente2, quer dizer uma realidade inteiramente definida pela ação de aquecer, e que, para traduzir o seu aspecto de “força”, já não necessita de uma contrapartida mítica como Hefesto. As forças que produziram e que animam o cosmo acham-se portanto sobre o mesmo plano e do mesmo modo que aquelas que vemos operar cada dia quando a chuva umedece a terra ou quando um fogo seca uma roupa molhada. O original, o primordial, despojam-se do seu mistério: a banalidade tranquilizadora do quotidiano. O mundo dos jônios, esse mundo “cheio de deuses”, é também plenamente natural.

Sob este aspecto, a revolução é tão ampla e leva tão longe o pensamento que, nos seus progressos ulteriores, a filosofia parecerá fazê-lo retroceder. Entre os “Físicos”, a positividade invadiu de súbito a totalidade do ser, sem executar o homem nem os deuses. Tudo o que é real é Natureza3. E esta natureza, separada do seu pano de fundo mítico, torna-se ela própria problema, objeto de uma discussão racional. A Natureza, physis, é força de vida e de movimento. Enquanto permaneciam confundidos os dois sentidos de phyein: produzir e gerar, assim como os dois sentidos de genesis: origem e nascimento, a explicação do devir assentava na imagem mítica da união sexual4. Compreender, era achar o pai e a mãe: desenhar a árvore genealógica. Mas, entre os jônios, os elementos naturais, tornados abstratos, já não se podem unir por casamento, à maneira dos homens. Assim, a cosmologia não modifica somente a sua linguagem, mas muda de conteúdo. Em vez de descrever os nascimentos sucessivos, definiu os princípios primeiros, constitutivos do ser. De narrativa histórica, transforma-se em um sistema que expõe a estrutura profunda do real. O problema da genesis, do devir, converte-se em uma indagação do que é estável, permanente, idêntico, para além da mudança. Ao mesmo tempo, a noção de physis é submetida a uma crítica que a despoja progressivamente de tudo o que ela tomava ainda do mito. Para dar a razão das mudanças no cosmo, recorre-se cada vez mais aos modelos que oferecem as enge-nhosidades técnicas, em vez de se referir à vida animal ou ao crescimento das plantas. O homem compreende melhor e de outro modo o que ele próprio construiu. O movimento de uma máquina explica-se por uma estrutura permanente da matéria, não pelas mudanças que engendra o dinamismo vital5. O velho princípio mítico de uma “luta” entre forças qualitativamente opostas, produzindo a emergência das coisas, cede a vez, em Anaxímenes, a uma separação mecânica de elementos que já não possuem entre eles senão diferenças quantitativas. O domínio da physis precisa-se e limita-se. Concebido como um mecanismo, o mundo esvazia-se pouco a pouco do divino que o animava entre os primeiros físicos. Na mesma ocasião, coloca-se o problema da origem do movimento; o divino concentra-se fora da natureza, em oposição à natureza, impelindo-a e regulando-a do exterior, como o Noík de Anaxágoras6.


  1. Werner Jaeger, The theology of the early greek philosophers, Oxford 1947, pp. 20-21; Cornford, op. cit., p. 259. O exemplo de Gaia, retido por Cornford, não é de resto dos mais felizes. Como observa Aristóteles, — e pelas razões que ele dá — os milésios não atribuem em geral, na sua física, um papel de primeiro plano à terra (Metafísica, A, 8, 980 sq.). Por outro lado, Gaia como força divina, está muito pouco humanizada. 

  2. Cf. Bruno Snell, op. cit., p. 299 sq. 

  3. A alma humana é um pedaço da natureza, talhado no estofo dos elementos. O divino é o fundo da natureza, o tecido inesgotável, a tapeçaria sempre em movimento onde, sem fim, se desenham e apagam as formas. 

  4. Cornford, op. cit., pp. 180-181. 

  5. O recurso a um modelo técnico não constitui por si próprio necessariamente uma transformação mental. O mito serve-se de imagens técnicas do mesmo modo que o pensamento racional. Basta recordar o lugar que a imaginação mítica atribui a operações de preparação de ligas, de tecelagem, de fiação, de modelagem, com roda ou com balança etc. Mas, a este nível de pensamento, o modelo técnico serve para caracterizar um tipo de atividade, ou a função de um agente: os deuses fiam o destino, pesam as sortes, como as mulheres fiam a lã e os intendentes a pesam. No pensamento racional, a imagem técnica assume uma função nova, estrutural e não já ativa. Faz compreender o jogo do mecanismo em vez de definir a operação de um agente; cf. Bruno Snell, The discovery of the mind, p. 215 sq. O autor sublinha a diferença entre a comparação técnica quando se dá o caso de Homero a utilizar, e o partido que dela tira, por exemplo, um Empédocles. Empédocles não procura mais exprimir uma manifestação vital e ativa, mas uma propriedade, uma estrutura permanente de um objeto. 

  6. Cf. W. Jaeger, op. cit., p. 160 sq.