A física jônia reúne-se a uma corrente de pensamento diferente e sob muitos aspectos oposta1. Poder-se-ia dizer que ela vem reforçá-la, tanto as duas formas de filosofia nascente aparecem, no seu contraste, complementares. Em terra de Itália, na Magna Grécia, os sábios já não põem em evidência a unidade da physis, mas a dualidade do homem, apreendida em uma experiência a um tempo religiosa e filosófica: existe uma alma humana diferente do corpo, oposta ao corpo e que o dirige, tal como a divindade procede com a natureza. A alma possui uma outra dimensão além do espacial, uma forma de ação e de movimento — o pensamento, que não é deslocação material2. Parente do divino, pode em certas condições conhecê-lo, alcançá-lo, unir-se-lhe, e conquistar uma existência liberta do tempo e da mudança.
Por detrás da natureza, reconstitui-se um pano de fundo invisível, uma realidade mais verdadeira, secreta e oculta, da qual a alma do filósofo tem a revelação e que é o contrário da physis. Assim, desde o seu primeiro passo, o pensamento racional parece tornar ao mito3. Parece, tão-somente. Retomando por sua conta uma estrutura de pensamento mítico, de fato afasta-se do seu ponto de partida. O “desdobramento” da physis, e a distinção que daí resulta de vários níveis do real, acusa e acentua esta separação da natureza, dos deuses, do homem, que é a primeira condição do pensamento racional. No mito, a diversidade dos planos ocultava uma ambiguidade que permitia confundi-los. A filosofia multiplica os planos para evitar a confusão. Através dela, as noções de humano, de natural, de divino, melhor distintas, definem-se e elaboram-se reciprocamente.
Ao invés, o que desqualifica a “natureza” aos olhos dos filósofos, e a rebaixa ao nível da simples aparência, é o fato do devir da physis não ser mais inteligível do que a hyle» do mito. O ser autêntico que a filosofia quer atingir e revelar para além da natureza não é o sobrenatural diferente4: a pura abstração, a identidade consigo própria, o princípio mesmo do pensamento racional, objetividade sob a forma do logos. Entre os jônios, a nova exigência da positividade era erigida ao primeiro golpe em absoluto no conceito da physis; em Parmênides, a nova exigência de inteligibilidade é erigida em absoluto no conceito do Ser, imutável e idêntico. Dilacerada entre estas duas exigências contraditórias, que marcam uma e outra igualmente uma ruptura decisiva com o mito, o pensamento racional lança-se, de sistema em sistema, em uma dialética cujo movimento gera a história da filosofia grega.
O nascimento da filosofia aparece, por conseguinte, solidário de duas grandes transformações mentais: um pensamento positivo, excluindo toda forma de sobrenatural e rejeitando a assimilação implícita estabelecida pelo mito entre fenômenos físicos e agentes divinos; um pensamento abstrato, despojando a realidade desta força de mudança que lhe conferia o mito, e recusando a antiga imagem da união dos opostos em benefício de uma formulação categórica do princípio de identidade.
Sobre as condições que permitiram, na Grécia do século VI, esta dupla revolução, Cornford não dá nenhuma explicação. Mas, no meio século que decorre entre a publicação das suas duas obras, o problema foi posto por outros autores. No Essai sur la jormation de la pensée grecque, P.-M. Schuhl, em introdução ao estudo da filosofia positiva dos milésios, acentuava a amplitude das transformações sociais e políticas que precedem o século VI. Notava a função libertadora que desempenharam, para o espírito, instituições como a moeda, o calendário, a escrita alfabética; o papel da navegação e do comércio da nova orientação do pensamento voltado para a prática5. Benjamin Farrington, por sua vez, ligava o racionalismo dos primeiros físicos da Jônia ao progresso técnico nas ricas cidades gregas da Ásia Menor6. Substituindo os antigos esquemas antropomórficos por uma interpretação mecanista e instrumentalista do universo, a filosofia dos jônios refletiria a importância crescente da técnica na vida social da época. O problema foi retomado por George Thomson, que formula contra a tese de Farrington uma objeção decisiva. É impossível estabelecer um elo direto entre pensamento racional e desenvolvimento técnico. No plano da técnica, a Grécia nada inventou nem inovou. Tributária do Oriente, neste domínio, nunca realmente o ultrapassou. E o Oriente, apesar da sua inteligência técnica, nunca pôde libertar-se do mito nem construir uma filosofia racional7. Cumpre, portanto, fazer intervir outros fatores, e Thomson insiste, com razão, sobre dois grandes grupos de fatos: a ausência, na Grécia, de uma monarquia de tipo oriental, bem cedo substituída por outras formas políticas; os começos, com a moeda, de uma economia mercantil, o aparecimento de uma classe de comerciantes, para os quais os objetos se despojam da sua diversidade qualitativa (valor de uso) e só têm o significado abstrato de uma mercadoria semelhante a todas as outras (valor de troca). Entretanto, se se quiser discernir de mais perto as condições concretas nas quais se podem operar a mutação do pensamento religioso em pensamento racional, é necessário fazer um novo rodeio. A física jônia esclareceu-nos sobre o conteúdo da primitiva filosofia; mostrou-nos aí uma transposição dos mitos cosmogônicos, a “teoria” dos fenômenos de que o rei, nos tempos antigos, possuía o domínio e a prática. A outra corrente do pensamento racional, a filosofia da Magna Grécia, vai permitir-nos esclarecer as origens do filósofo, os seus antecedentes como tipo de personagem humano.
Pierre-Maxime Schuhl mostrou que estas duas correntes correspondem às duas tendências antagonistas da religião e da cultura gregas, e que o seu conflito serve de elemento motor ao desenvolvimento da filosofia (Essai sur la formation de la pensée grecque. lntroduction historique à une étude de la philosophie plaíonicienne,2 Paris, 1949). ↩
Bruno Snell examinou, através da poesia lírica grega antiga, a descoberta da alma humana, no que constitui as suas dimensões propriamente espirituais: interioridade, intensidade, subjetividade. Nota a inovação que constitui a ideia de uma ‘profundidade” do pensamento. Homero não conhece expressões como bathymetes, bathyphron: ao pensar profundo; diz polymetis, polyphron, ao múltiplo pensar. A noção de que os fatos intelectuais e espirituais (sentimento, reflexão, conhecimento) têm uma “profundidade” surge na poesia arcaica antes de se exprimir, por exemplo, em Heráclito (ap. cit., pp. 36-37). ↩
A antítese, fundamental no pensamento religioso, das phanera as coisas visíveis, e das adela: as coisas invisíveis, encontra-se transposta na filosofia, na ciência e na distinção jurídica dos bens aparentes e não aparentes: cf. P.-M. Schuhl, “Adèla”, Homo. Etudes philosophiques, I, Annales publiées par la Faculté des Lettres de Toulouse, 1953, pp. 86-94; L. Gernet, “Choses visibles et choses invisibles”, Revue philosophique, 1956, pp. 79-87. ↩
Na religião, o mito exprime uma verdade essencial; é saber autêntico, modelo da realidade. No pensamento racional, inverte-se a relação. O mito já não é senão a imagem do saber autêntico, e o seu objeto, a génesis, uma simples imitação do modelo, o Ser imutável e eterno. O mito define então o domínio do verossímil, da crença, pistis, por oposição à certeza da ciência. Pelo fato de ser conforme ao esquema mítico, o desdobramento da realidade, pela filosofia, em modelo e imagem, nem por isso significa menos o sentido de uma desvalorização do mito, rebaixado ao nível da imagem. Cf., em particular, Platão, Timeu, 29 sq. ↩
P.-M. Schuhl, op. cit., pp. 151-175. ↩
B. Farrington, Greek science, t. I, Londres, 1944, pp. 36 sq. ↩
G. Thomson, op. cit., pp. 171-172. ↩