Aubry: A Questão Reflexiva

A questão diretora do Primeiro Alcibíades é aquela da essência do homem. O preceito délfico é interpretado como uma exortação não tanto ao conhecimento de si senão àquela do si em si; ou ainda: o conhecimento de si não é possível senão enquanto tem por objeto a essência na qual a individualidade se anula ao mesmo tempo que a identidade é fundada. Ao contrário em Plotino (o que causa estranheza no Tratado 53). Sem dúvida Porfírio retoma, em seu título, a questão platônica “o que é o homem? “. Mas este título é infiel à démarche platônica. Pois Plotino não demanda “o que é o homem?”, mas “que somos nós?”. Mais ainda: ele dá a esta última questão uma virada reflexiva; desde o §1, depois de ser interrogado sobre o assunto das diferentes faculdades, ele perseguia: “isto mesmo que investiga, que examina e lança estas questões, que pode ser ele?” (1, 9-11).

Aqui o tratado desprende-se do De anima de Aristóteles e do Primeiro Alcibíades, se engajando em uma via radicalmente inexplorada: o sujeito no sentido clássico do termo — a substância, o sujeito de atribuição — um sujeito moderno, dotado de consciência e de reflexividade. Não se trata mais de decidir se o homem é alma, corpo, ou mistura da alma e do corpo. Trata-se, escreve Plotino, de se interrogar sobre isto mesmo que conduz esta investigação: o sujeito filosofante se toma ele mesmo por objeto de investigação. A conversão não somente à interiorização, mas à consciência: e esta consciência se dá sob a forma de reflexividade imediata.

Está aí a novidade: sabe-se com efeito que em Platão como em Aristóteles, a reflexividade não se dá senão como mediada. No Primeiro Alcibíades duplamente: primeiro pela relação inter-humana, tal qual ela se encarna, em particular na estrutura dialógica; em seguida, pelo “melhor e o mais divino na alma” descoberto através desta. Assim não tenho acesso a mim mesmo senão pelo intermediários de um outro que eu, e o que descubro assim fazendo, não sou eu (como pessoa singular, irredutível à qualquer outro), mas o outro em mim: esta essência que me excede, este impessoal que nos é comum, ao outro e a mim1.

Da mesma forma em Aristóteles; a consciência aristotélica não se dá a princípio senão como uma consciência de objeto, e não é consciência de si senão indiretamente: é na ocasião da percepção de um objeto singular que percebemos que percebemos2. Ao senso comum revem a dupla tarefa de unificar as sensações em um mesmo objeto, e de reportar este objeto ao sujeito sentidor3. O acesso à interioridade é portanto mediada pela exterioridade, condicionada pela percepção atual. Aditemos que o sujeito que se percebe assim é o sujeito sensível e sentidor: a consciência não se dá a princípio senão como uma faculdade da alma encarnada, imanente ao corpo e como a unidade dos diferentes sentidos4. O sujeito da consciência, em suma, é o corpo vivente5.

[…]

A figura plotiniana da reflexividade, tal qual se apresenta no Tratado 53, se distingue tanto das figuras platônicas e aristotélicas quanto da figura cartesiana: o sujeito filosofante toma por objeto de investigação sua própria atividade de pensamento. Ele tem portanto um acesso imediato a esta, independente da relação inter-subjetiva, como da percepção externa. No entanto, esta apreensão imediata do sujeito pensante por ele mesmo não é nem última, nem fundadora: se refletindo ao tempo de refletir, o sujeito plotiniano não apreende sua essência, mas sua distância desta. Não descobre que pensa, mas simplesmente que pode pensar. O que apreende assim não é uma identidade atual mas uma identidade possível, excedentária e irrealizável. A consciência lhe revela que não é ainda adequado a sua essência, idêntica à alma superior e separada, que, ela, é ato puro de pensamento. Também o sujeito plotiniano não se apreende como uma substância, mas como um movimento: não é definido senão pelas atividade cognitivas que supõem a colocação em relação do sensível com o inteligível, e ultimamente, a “reminiscência”. compreendida ao mesmo tempo como tomada de consciência e como atualização do inteligível. O sujeito plotiniano não é nada mais finalmente que este movimento pelo qual, tomando consciência do inteligível em si, descobre que ele é, essencialmente, inteligência, e se esforça por abolir sua distância de sua essência em se identificando à alma separada.


  1. Le Charmide énonce comme une règle générale ce caractère indirect de la réflexivité : on ne peut se voir soi-même qu’en voyant ce qui n’est pas soi-même. Cf. 168 d : « Pour la vision, il est forcé que, s’il est vrai qu’elle soit vision d’elle-même, elle doive posséder une couleur ; impossible en effet qu’une vision voie jamais rien à quoi fait défaut la couleur. » En même temps qu’il lui donne pour condition la médiation, le Charmide dénonce la contradiction de la réflexivité : on ne peut être à la fois agent et patient (169 a). Sur les impasses du Charmide, cf. V. TSOUNA, « Socrate et la connaissance de soi : quelques interprétations », Philosophie antique, n° 1, 2001, p. 37-64. 

  2. Voir sur ce point les analyses de D. Modrak, Aristotle. The Power of Perception, Chicago, 1987. 

  3. Cf. De anima, III, 2, 425 b 12 ; cf. aussi De sensu 437 a 27-29 ; 448 a 26-30 ; 449 a 10-17 ; De memoria 450 a 10 ; 451 a 16 ; De somno 455 a 15-20 ; Phys. VII, 244 b 15. Sur la question soulevée par les divergences entre ces textes, de savoir si le sens commun est une fonction commune aux différents sens, ou un sens à part, voir en particulier J. BRUNSCHWIG, « En quel sens le sens commun est-il commun ? », dans G. Romeyer Dherbey (dir.) et Ch. Viano (éd.), Corps et âme. Sur le « De anima » d’Aristote, Vrin, 1996, p. 189-218. 

  4. On peut identifier là une position anti-platonicienne qui va contre, en particulier, l’argument du Théétète (184 ds.) selon lequel le principe d’unification des sensations ne peut lui-même être un sens, mais doit être identifié à l’âme et à la pensée. Sur ce point, voir M. Narcy, « ΚΡΙΣΙΣ et ΑΙΣΘΗΣΙΣ (De anima, III, 2) », dans G. Romeyer Dherbey (dir.) et Ch. Viano (éd.), Corps et âme…, p. 239-256. 

  5. Cf. W. F. R. Hardie, «Concepts of consciousness in Aristotle», Mind, n° 85, 1976, p. 388-411. 

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