O problema essencial que se coloca ao comentador consiste em saber o que deve entender-se por este Espírito, que Anaxágoras põe no centro de todas as suas explicações.
A dar crédito a Platão, este Espírito não passaria de uma espécie de Deus ex machina sem muita consistência, e Sócrates diz-nos quanto a leitura de Anaxágoras, em que tinha depositado muitas esperanças, o tinha profundamente decepcionado (cf. Fédon, 97 c). Aristóteles vê igualmente no Espírito de Anaxágoras o que ele invoca quando está embaraçado para explicar a produção de um fenômeno (Metaf., I 3, 985 a 17).
W. Jaeger pensa, pelo contrário, que o Espírito de Anaxágoras é o Deus soberano, dominador e independente, mencionado pela primeira vez de modo explícito no pensamento grego. Para Jaeger, graças a Anaxágoras, o homem pode tomar consciência de que tem acesso ao divino pela razão que nele existe1. Já Zeller considerava suspeita a assimilação2 do Espírito a Deus que Jaeger considera indubitável. Em seu entender, este Espírito continua a ser ainda uma força da natureza, não podendo ver nele um ser pessoal ou puramente espiritual.
Nos antípodas destas interpretações situam-se as leituras de Détienne, que pretende que Anaxágoras teria permitido à especulação intelectual passar do domínio da magia, onde se compraz Hermótimo, ao da filosofia. Para ele, Anaxágoras quis substituir a visão do adivinho pelo método racional. Por isso Détienne sublinha a importância de um acontecimento como o da queda do aerólito de Aégos Pómatos, no qual alguns pretenderam ver um presságio, enquanto Anaxágoras explicava o fenômeno por meio de causas puramente naturais. Teria sido essa a razão pela qual Anaxágoras fora acusado de impiedade. Daí a conclusão de Détienne: «Pensador racionalista e intrinsecamente laico, Anaxágoras devia, para o século XVIII, fazer figura de anti-Platão e representar o ideal de uma crítica racionalista, deliberadamente anti-religiosa.»3
Eis-nos, mais uma vez, perante o mesmo problema: podemos saber o que Anaxágoras quis dizer ao certo? No atual estado dos textos, não só qualquer resposta categórica pode parecer presunçosa como se deve mesmo perguntar se esta questão possui um sentido tão simples como o que, muitas vezes, se lhe atribui. Nada mais podemos fazer do que ler os Pré-Socráticos em geral, e Anaxágoras em particular, em função do que são hoje as nossas preocupações intelectuais. É certamente grande a tentação de fazer dizer a um autor precisamente o que dele se esperava, mas convém, no entanto, não extrair daí uma espécie de conclusão céptica e afirmar que a história da filosofia nos condena ao subjetivismo da interpretação. Se hoje nos colocamos certas questões e se as colocamos às obras dos que nos precederam, é, em certo sentido, porque nos transmitiram os diferentes movimentos de ideias que nos conduziram até elas. Pode dizer-se, por fim, que não somos tanto nós quem interroga os filósofos do passado, mas eles que nos levaram a interrogá-los acerca dos diferentes problemas que nos legaram. É com base nos seus pontos de partida que fomos levados a seguir numerosos itinerários intelectuais, frequentemente divergentes, mas que radicam numa origem cuja riqueza provém precisamente do facto de os comportar a todos. Talvez seja essa a razão pela qual parece não poder dizer-se que o sentido de uma filosofia lhe não é exatamente contemporâneo, mas se encontra no futuro. Como o poeta de Mallarmé, o filósofo é «exatamente como em si mesmo enfim a eternidade o transforma».
W. JAEGER, A la naissance de la théologie, p. 176. ↩
ZELLER, La philosophie des Grecs, t. II, p. 406. ↩
DÉTIENNE, «Les origines religieuses de Ia notion d’intellect: Hermotirae et Anaxagore», in Revue philosophique, 1964, p. 169. ↩