Empédocles é conhecido sobretudo como o filósofo que fez da vida do mundo uma tragédia cósmica, comandada pela luta implacável a que se entregam as duas grandes forças que orientam todos os fenômenos e acontecimentos do cosmos: o Amor e o Ódio.
Temos insistido na ideia de que o pitagorismo tinha definido o número muito mais como o resultado do fraccionamento do Uno-Todo originário e primeiro do que como a justaposição de unidades residuais elementares. Mas o pitagorismo calava-se acerca da razão ou da força que conduzira o Uno a fragmentar-se à maneira de Diónisos-Zagreus, como nada dizia do que conduzira à constituição de números-figuras. Todavia, as tradições órficas, de que é difícil saber se influenciaram o pitagorismo ou se foi o pitagorismo que sobre elas teve influência, colocavam toda uma escatologia, subentendida por teorias acerca das metempsicose e metensomatose, no âmago da tragédia do cosmos.
Empédocles deve muito à tradição órfico-pitagórica que faz presidir à Justiça do mundo o ciclo dos nascimentos e renascimentos. Insiste, com efeito, na ideia de que o homem é um ser exilado e errante nesta terra onde expia as faltas da sua existência anterior. Ele próprio se reconhece um desses culpados perseguidos pelo Ódio:
E eu sou um daqueles, um vagabundo exilado dos deuses,
Porque pus a minha confiança no Ódio furioso, (fgt. 115)
Invade-o um sentimento de desespero quando, constrangido a revestir-se, como todos os homens, de um «vestido de carne» que lhe é estranho (fgt. 126), considera o lugar onde vai viver:
Chorei e solucei à vista desta terra insólita, (fgt. 118)
As potências que conduzem as almas ao mundo dos homens dirigem-se-lhes nestes termos:
Chegamos a esta caverna aberta, (fgt. 120)
O mundo é apenas o lugar da infelicidade (ates leimon)
Onde a Morte e o Ódio e os demais gênios da Morte
E as doenças que destroem e as putrefacções e as obras da dissolução Erram pela campina da Desgraça, nas trevas, (fgt. 121)
No entanto, certos seres privilegiados, como Pitágoras e o próprio Empédocles, são capazes de se recordar das suas anteriores existências e de extrair dessa reminiscência a fonte de um saber prodigioso. Convém dizer que o conhecimento não provém nem dos sentidos nem propriamente do espírito, mas de uma reminiscência (anamnesis) das diversas vicissitudes por que passaram os elementos no decurso da sua mistura (mixis) e das suas divisões (diallaxis). O conhecimento é, então, essencialmente iniciação, êxtase, gnose e purificação, porque mergulha na profundeza de um tempo, enraizando para lá das divisões que separam e da multiplicidade que dispersa.
A atração e a divisão encontram-se no âmago do drama que rege o cosmos. Os elementos, os seres e as coisas são alternadamente unidos pelo Amor e separados pelo Ódio; daí esta passagem central da obra de Empédocles:
O Amor e o Ódio, como eram antes, assim serão, e jamais, penso,
O tempo infinito será despojado deste par.
Irei falar do duplo processo das coisas: porque ora o Uno cresce, permanecendo só,
A partir do Múltiplo, ora, ao contrário, se divide e do Uno nasce o Múltiplo.
Do que é mortal há, pois, duplo nascimento e dupla destruição:
A união de todas as coisas provoca o nascimento e a destruição E, por outro lado, o que se forma voa em todas as direções, quando os elementos se separam.
E tais elementos jamais cessam seu contínuo intercâmbio,
Ora tudo se unifica, graças ao Amor,
Ora, de novo, cada elemento se separa, arrastado pela força hostil do Ódio.
Por isso, na medida em que dispõem do poder de se aproximar do Uno a partir do Múltiplo
E, de novo, quando o Uno se dissolve e daí surge o Múltiplo,
Nessa medida vêm ao ser e não possuem vida imutável.
Mas, na medida em que jamais cessam seu perpétuo intercâmbio,
Nessa medida permanecem sempre imutáveis segundo o ciclo. (fgt. 16-17)
O devir e o curso do mundo exprimem aquilo em que o Uno se divide e se reconcilia, sendo ois indivíduos a parada deste drama universal.
Se o conjunto desta visão do mundo é assaz claro, surgem diversas dificuldades quando se entra em pormenores. Como aparece o Ódio? Não nasce de um acontecimento qualquer, dado que, na filosofia de Empédocles, não tem cabimento a ideia de criação. Por outro lado, o Ódio, como o Amor, sempre existirá, porque o tempo nunca será privado deste par (fgt. 16). Parece, todavia, poder dar-se as seguintes precisões acerca desta gesta cósmica. No movimento circular do Sphairos, o Ódio encontra-se de início nos extremos limites daquele, já que, por natureza, é centrífugo:
Enquanto tudo se reunia, o Ódio era relegado para os extremos limites, (fgt. 36)
O Amor, pelo contrário, encontra-se no centro do turbilhão e tudo converge em sua direção para constituir o Uno :
«Quando o Amor atingiu o centro do turbilhão, então todos os elementos nele se precipitaram para constituir o Uno, não de uma só vez, mas reunindo-se voluntariamente, uns de um lado, os outros do outro.» (fgt. 35)
Mas esta espécie de equilíbrio, que coloca o Amor ao centro e o Ódio nos limites exteriores, é apenas provisório. Quando o tempo se completa, chega a vez do Ódio:
Quando o grande Ódio se tiver alimentado nos membros do Sphairos
E se dirigir para as honras, quando for cumprido o tempo
Que lhe é atribuído alternadamente pelo Grande Pacto… (fgt. 30)
Mas quando o Ódio começou mais uma vez a prevalecer,
Então houve de novo um movimento no Sphairos,
Porque todos os membros do deus foram sucessivamente abalados, (fgt. 31)
Empédocles não fornece qualquer precisão acerca do desencadear do Ódio. Talvez lhe bastasse o apelo ao «amplo pacto» que preside às estruturas das coisas e ao devir dos seres.
A luta do Amor e do Ódio, que constitui a própria vida do cosmos, reproduz-se no homem, microcosmos que vive em estreita relação com o que o rodeia:
Este combate de duas forças vê-se claramente na multidão dos membros dos mortais:
Às vezes, sob o efeito do Amor, todos os membros que o corpo possui
Se reúnem no Uno, no auge da vida florescente,
Mas, outras vezes, dispersos pela nociva Discórdia (Heris),
Erram, por sua vez, até às mais longínquas margens da vida.
O mesmo se passa corri as plantas, os peixes que habitam as águas,
Os animais das montanhas e as aves que deslizam sobre suas asas. (fgt. 20)
É igualmente o Amor que encontramos no coração dos mortais que dele estão possuídos e que procuram unir-se:
Também a ele consideramos inato nos membros dos mortais,
Dele nascem os pensamentos de amor
E se realizam as ações harmoniosas.
Chamam-lhe Alegria ou Afrodite.
Nenhum mortal o descobriu, embora se mova em círculo
Em seu redor. (fgt. 17)
Dado que apenas existem as combinações e as dissociações de elementos, não há lugar no mundo para qualquer criação. Por isso, o que tomamos por tal não passa de alteração de formas:
Dir-te-ei ainda outra coisa: das coisas mortais não há criação (physis)
Nem desaparecimento na morte funesta
Mas somente mistura (mixis) e dissociação (diallaxis) do que fora misturado.
Criação é apenas o nome atribuído a tal fenômeno pelos homens (fgt. 8). O nascimento e a morte são apenas metamorfoses no interior do ciclo:
Quando os elementos combinados surgem à luz sob a forma de um homem
Ou sob a forma de qualquer outra espécie de animal selvagem, ou de planta,
Ou de pássaro, então os homens dizem que houve um nascimento
E, quando os elementos se separam, os homens chamam a isso a morte funesta.
Não utilizam os termos que a Justiça exige. (fgt. 9)
O que predomina alternadamente na evolução do ciclo são estes quatro elementos: a água, o ar, a terra e o fogo, assim como o Amor e o Ódio:
Porque só eles existem, correndo uns através dos outros,
Transformam-se em homens e em espécies dos outros animais;
Ora reunidos sob a influência do Amor em um todo ordenado
Ora cada um deles se movendo separadamente, sob o efeito da força hostil do Ódio. (fgt. 26)
(Jean Brun, “Pré-Socráticos”)