«Afirmamos», diz Platão, «a existência do Belo em si, do Bom em si, e do mesmo modo, para todas as coisas que posicionamos anteriormente como múltiplas, declaramos que a cada uma corresponde a sua ideia que é única e à qual chamamos de essência» (Rep., VI, 507 b), e Platão acrescenta que «as coisas múltiplas são vistas e não concebidas, e as ideias são concebidas e não vistas».
Antes de prosseguir naquilo que entendemos com esta ideia do «Belo em si», vejamos duas objeções possíveis, que são dois contra-sensos sobre aquilo que Platão quer dizer, e que Platão denunciou de antemão no Parmênides.
a) Um contraditor, talvez Antísteno, talvez Diógenes, dizia que via cavalos mas não via «o Cavalo em si» de Platão; é a partir desta posição, que torna a ideia uma realidade que duplica o real e que não podemos apreender, que Aristóteles irá lançar a sua famosa objeção do «terceiro homem», O erro de Platão, para Aristóteles, é o de ter «separado» as ideias das coisas sensíveis e de ter, deste modo, aposto uma segunda realidade inexplicada junto àquela de que se queria dar conta, Haveria portanto, por um lado, o homem sensível e, por outro, o homem inteligível; mas, então, aquilo que é comum ao homem sensível e ao homem inteligível vai levar-nos a falar de um terceiro homem; aquilo que é comum a esse terceiro homem, ao Homem em si e ao homem sensível levará a falar de um quarto homem e assim sucessivamente até ao infinito (Cf. Aristóteles, Metafísica, A990b15, M1079a13 — neste ponto, v. Robin, La théorie platonicienne des idées, pp. 15, 21, 50, 609).. Para Aristóteles, não se pode evitar a objeção do terceiro homem a menos que se façam universais, não com as substâncias, como, segundo ele, faz Platão, mas Com os predicados comuns de qualidade; daí a ideia aristotélica da «forma» (Cf. Aristóteles, Metafísica, Z13, 14). Na objeção do terceiro homem faz-se, portanto, da ideia um objeto que é arrumado ao lado dos outros objetos e dos quais no entanto a separam.
Platão previu esta objeção no Parmênides: «Quando um pluralidade de objetos te surgem como grandes, o teu olhar, dominando o conjunto, pensa descobrir, suponho eu, um certo carácter uno e idêntico; e é isso que te faz posicionar o grande como unidade.
«—Aquilo que supões é verdadeiro, teria dito Sócrates.
«—Então, o Grande em si e os múltiplos grandes não revelarão, para um semelhante olhar da alma dominando o seu conjunto, a unidade de um novo grande, que lhes impõe a todos esse aspecto de grandeza?
«—É provável.
«— É portanto uma nova ideia (Auguste Diès, cuja tradução estamos a seguir, traduz por «forma»; preferimos traduzir por «ideia» e reservar a tradução de «forma» para os textos aristotélicos nos quais é utilizada essa palavra) de grandeza que vai surgir, aberta para lá da Grandeza em si e dos seus participantes: novo conjunto, que irá ser dominado por uma nova ideia, à qual todos os componentes desse conjunto deverão o fato de ser grandes; e já não será portanto unidade aquilo que será cada ideia, mas sim infinita multiplicidade» (Parmênides, 132 a).
b) A segunda objeção não é uma acusação de realismo, mas sim uma acusação de idealismo.
«—A menos, Parmênides, teria oposto Sócrates, que cada uma dessas ideias seja um pensamento (noema), e que deva produzir-se unicamente nas almas» (Parmênides, 132 b). Isto equivaleria a dizer que a ideia não é, no fundo, um Ser real, mas sim um ser de razão, uma visão do espírito.
Que concluir destas duas dificuldades? O realismo do sensível leva-nos, já o sabemos, ao cepticismo; o realismo do inteligível colocaria o problema de saber como comunicar com esse inteligível; o realismo colocaria o problema de saber como um simples pensamento pode ser o objeto conhecido. A grandeza de Platão, estaríamos tentados em dizer, é a de dar uma solução pelo mito: a ideia é ao mesmo tempo transcendente às coisas (e é disto que querem que tomemos consciência os mitos do Timeu e imanente à alma (e é disso que querem que tomemos consciência os mitos acerca do destino da alma). A condição do homem é tal que este se encontra no cruzamento do visível que o cega (o mundo sensível) e de uma luz que também o cega (o Bem que ilumina o mundo inteligível). O homem vê de mais para se contentar com as coisas, mas não vê o suficiente para se considerar Deus.
No fundo, iríamos encontrar mais tarde em Descartes uma posição pouco afastada da de Platão. Para Descartes, a evidência não vem das coisas, mas sim do entendimento, a ideia clara e distinta é aquela que pertence a essa «concepção de um espírito puro e atento» que Descartes chama «intuição» (Descartes, Règles pour la diretion de l’esprit, n.° III). Mas de onde vem a luz dessa ideia clara e distinta? Não vem de mim; sou, de uma certa maneira, o seu depositário; pois se podemos dizer de certas ideias nossas que são «inatas», para assim marcar o fato de não as devermos a mensagens sensíveis que o nosso organismo possa receber dos corpos, devemos entender com isto que estas ideias nasceram connosco e não que nasceram de nós. São, para Descartes, a marca que Deus colocou em nós, como um operário deixa a sua marca num trabalho; esse Deus, criador das verdades eternas e garante do valor das ideias claras e distintas, é o testemunho de que o sentido do conhecimento é efetivamente um sentido que é para o homem, mas não é um sentido que vem do homem.
Deste modo, diremos que, em Platão, podemos no limite falar ao mesmo tempo de um realismo da ideia —na medida em que ela é aquilo pelo qual existe algo pensável (por isso está «separada» e por isso é necessária uma «conversão» para a descobrir) — e de um idealismo da ideia, na medida em que essa ideia é pensada pelo homem (sem que possa ser reduzida a um pensamento do homem). É, segundo parece, isso que permite responder à dificuldade mais grave da teoria das ideias: se as ideias são para nós e são cognoscíveis, não são em si, e se são em si não são cognoscíveis (cf. Parmênides, 133 o e seg.). Ou ainda: ou as ideias são para nós e não são ideias, ou então são em si e não são para nós. Platão quer mostrar que pensar algo é ao mesmo tempo pensar numa ideia: o homem está acima daquilo que pensa e abaixo daquilo por que pensa.
É dessa dificuldade que Platão quer que tomemos consciência, ao pedir ao mito que nos abra um caminho em direção ao inacessível.