Brun: O devir

A maioria das vezes, reduz-se o heraclitismo a esta filosofia do devir, que se opõe, de maneira um pouco sumária, à filosofia eleática do ser e às ontologias estáticas. Sabe-se que Hegel e Nietzsche, de pontos de vista muito diferentes, reivindicarão Heráclito como precursor, vendo nele o proclamador de forma nítida de que não há ser, a não ser o devir. Mas, quando se fala do devir em Heráclito, convém não esquecer nunca o que escreve acerca do Logos, sob pena de desnaturar o sentido e o alcance do que pretendeu dizer.

Certamente que a filosofia de Heráclito nada tem a ver com uma ontologia estática que se contentaria com proclamar, como fará Parmênides, que o Ser é e o não-ser não é; o devir em questão no heraclitismo não é um mobilismo que afirma haver apenas movimento e nada mais.

É conhecida a célebre imagem: «Não se pode tomar banho duas vezes no mesmo rio» (fgt. 91), indo mesmo mais longe um discípulo, ao afirmar que nem sequer se toma banho uma única vez. Por isso, tudo corre e nada permanece, «aqueles que descem aos mesmos rios recebem águas sempre novas» (fgt. 12). Tal visão do mundo apoia-se na transformação incessante das coisas que passam e dos seres que morrem, porque o devir é feito da perpétua metamorfose das substâncias que se corrompem e se transformam : «Não é possível tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado, porque se recompõe e se reconstitui de novo através da rapidez da mudança, ou melhor, não é de novo, nem em seguida, mas ao mesmo tempo que surge e desaparece.» (fgt. 91) Encontramos no devir o campo em que se afrontam os contrários, pois que «as coisas frias se reaquecem, o quente arrefece, o úmido seca e o árido umedece» (fgt. 126). Há, por conseguinte, no devir uma espécie de síntese da afirmação e da negação; por isso podemos afirmar: «Descemos e não descemos aos mesmos rios, somos e não somos.» (fgt. 49 a)

Mas o devir de que fala Heráclito não é um puro devir linear, que seria negação absoluta do Ser, antes se desenrola no interior de um círculo. Verificamo-lo a propósito dos próprios elementos: «A vida do fogo nasce da morte da terra, a vida do ar nasce da morte do fogo, a vida da água nasce da morte do ar e a terra nasce da morte da água. A morte do fogo engendra o ar e a morte do ar engendra a água. A morte da terra faz nascer a água, a morte da água faz nascer o ar, a morte do ar engendra o fogo. E inversamente.» (fgt. 76) Há, pois, um ciclo do devir e este ciclo é ele mesmo uma harmonia, na medida em que realiza a coinoidência dos contrários; com efeito, «na circunferência, o começo e o fim coincidem» (fgt. 103).

Portanto, tudo é mero aparecer no seio de um devir puro e absoluto, já que, de um lado, está o Logos que governa todas as coisas e, do outro, o devir se desenrola no interior de um círculo apertado por laços poderosos. Se somos incapazes de abarcar tal círculo de um só relance de olhos, é, antes de mais, porque «a natureza gosta de se esconder» (fgt. 123), em seguida, já o dissemos, porque somos incapazes de ver verdadeiramente o que se nos apresenta. Porque, não o esqueçamos, se «o mais belo macaco é feio comparado à espécie humana» (fgt. 82), em contrapartida, «o mais sábio dos homens, comparado com a divindade, assemelha-se a um macaco quanto à sabedoria, à beleza e a tudo o mais» (fgt. 83).

Pode dizer-se que a filosofia de Heráclito é muito mais uma filosofia do revir que uma filosofia do devir, no sentido clássico do termo; o devir de que aqui se trata não é, com efeito, um devir , do Ser mas um devir no Ser. É sempre no interior do Mesmo que se operam as mudanças: «A vida e a morte, a juventude e a velhice, a vigília e o sono são a mesma coisa, porque estes transformam-se naquelas e inversamente aquelas transformam-se nestes.» (fgt. 88) Encontramos de novo, apenas transposta, a ideia de que todas as coisas nascem do Uno e o Uno de todas as coisas. Heráclito diz-nos que «Deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, saciedade e fome. Transforma-se como o fogo que, quando misturado de perfumes, reoebe nomes diferentes conforme o prazer de cada um» (fgt. 67). Jamais franquearemos os limites do Uno que lhe foram atribuídos pelo Logos que governa. Passa-se com ele o mesmo que com o sol que jamais ultrapassará os seus limites, caso contrário as Erínias, guardiãs da justiça, descobri-lo-iam (fgt. 67).

Se o heraclitismo fosse uma filosofia do devir puro e simples, se reduzisse tudo a uma combinatória e a um jogo de relações, não se poria o problema do sentido do devir. Todos os mobilismos, erostratismos e niilismos que se reclamam pouco ou muito de Nietzsche deixam sem resposta a questão de saber onde isso nos conduz, quando não se recusam mesmo a encontrar um sentido para esta questão. Ora, Heráclito faz-nos uma recomendação: «Devemos recordar aquele que esquece onde o caminho conduz» (fgt. 71), e precisa que a «sabedoria consiste apenas numa coisa: conhecer o Pensamento que tudo governa através de todas as coisas» (fgt. 41).

No entanto, esta sabedoria está separada de tudo, o que não é compreendido por nenhum daqueles que têm por hábito discorrer (fgt. 108). Um devir sem referência ao que o funda, e em cujo interior se situa, situar-se-ia nos antípodas do que os fragmentos de Heráclito sobre o Logos implicam. Se os homens, muitas vezes, se contentam com o mobilismo ou o erigem em visão do mundo, é porque, não o esqueçamos, «a mansão dos homens não abriga o conhecimento, possui-o a do deus» (fgt. 78).

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