Com essa enumeração dos estados da mente correspondentes às diversas modalidades de objetos do conhecimento, conclui o livro VI (A República), e chegamos à terceira imagem, a da caverna, que abre o livro VII. Essa terceira imagem recupera — como já disse — todos os elementos constitutivos dessas duas imagens anteriores, e dá a essas distinções assim estabelecidas uma dimensão existencial e o caráter de um drama.
Sócrates introduz a imagem da caverna com as seguintes palavras, no início do livro VII: “Depois disso — prossegui eu — imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a seguinte experiência” (514 a). “Imagina” é apeikason, (104) do verbo eikazo, donde eikasia, a afecção na alma resultante da apreensão de imagens. A construção desta terceira imagem visa, pois, descrever a nossa, natureza, relativamente à paideia (“educação”) e à apaideusia (“falta de educação”): “suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no gênero dos tapumes que os manipuladores de marionetes colocam diante do público, para mostrarem as suas habilidades por cima deles. — Estou a ver — disse ele. — Visiona também ao longo deste muro, homens que transportam toda a espécie de objetos, que o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda espécie de lavor; como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros seguem calados.” (República, 514 a — 515 a). O interlocutor de Sócrates o interrompe com este comentário: “estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas.” Atopon (…) eikona kai desmotas atopous. Atopos é “extravagante”, “descabido”, “absurdo”, e ainda, como nesta tradução de que nos servimos, “estranho”. “Semelhantes a nós” responde Sócrates. (República, 515a) (105)
Há neste drama, cujo protagonista é a nossa própria natureza, colocada entre os extremos da educação e da falta que esta nos faz, quatro episódios que se representam diante de diversos cenários. O primeiro episódio, diante do primeiro cenário, se descreve com as seguintes palavras: “Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projetadas pelo fogo na parede oposta da caverna? — Como não — respondeu ele — se são forçados a manter a cabeça imóvel toda a vida? — E os objetos transportados? Não se passa o mesmo com eles? — Sem dúvida. — Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te parece que eles julgariam estar a nomear objetos reais, quando designavam o que viam? — É forçoso. — E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum dos transeuntes falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa, senão que era a voz da sombra que passava? — Por Zeus, que sim! — De qualquer modo — afirmei — pessoas nessas condições não pensavam que a realidade fosse senão a sombra dos objetos.” (República, 515 a — c).