(Excertos de Eudoro de Sousa, “Horizonte e Complementaridade”)
Desde a primeira edição da Psique de Erwin Rohde, reina entre filólogos e historiadores da filosofia um acordo quase unânime acerca da origem não grega deste segundo «momento» do primitivo pitagorismo, o dualismo psicofísico. Corpo e alma, no homem e em todos os seres viventes; matéria e espírito, em toda a amplitude do cosmo, inequivocamente distintos e separados, ninguém achará, sem o extremado intuito de revoluir a ordem dos tempos, em fidedigno testemunho do pensamento, poética ou prosaicamente expresso, anterior à data mais provável em que se teriam difundido as ideias pitagóricas. Como as pesquisas de Rohde acerca das concepções gregas da imortalidade da alma tinham por fundamento antropológico o pré-animismo de Tylor, não se nos afigura despropositado que, em confronto, citemos algumas das mais significativas passagens de um livro de outro antropólogo, incidentes no mesmo tema, mas que gozam da inapreciável vantagem de mostrar que, não obstante a insegura base da sua construção verdadeiramente monumental, é ainda para o mesmo lado que se procuram as origens do pitagorismo, pelo menos no respeitante ao mencionado dualismo psicofísico, só que a concordância entre os dados da antropologia e da filologia se alinham, agora, num paralelismo quase perfeito.
«Nas páginas seguintes, ocupar-nos-á a questão de averiguar o papel que a alma tem desempenhado nas ideias acerca da existência após a morte. Procuraremos mostrar que, da variedade dos relatos colhidos pelos etnólogos, se destacam dois círculos de representações, cada um dos quais reflete um conceito fundamental, inteiramente diverso do outro. Em primeiro lugar, há que apercebermo-nos da unidade de todas as representações do chamado ‘Reino dos Mortos’. As narrativas sobre viagens a esse reino não deixam subsistir a menor dúvida de que é o homem inteiro, e não, apenas, uma parte dele, que empreende a jornada — o homem inteiro […] mas sem seu corpo terrestre. Por outro lado, se é certo que, sobre a concepção da existência após a morte, o material etnológico nos aponta para a ideia de uma alma que, propriamente, não se pode designar como tal, visto que, no fundo, ela é todo o homem, também é certo que há outros testemunhos que efetivamente depõem sobre aquela alma que por ocasião da morte se separa do indivíduo. Foi, talvez, Kruijt quem primeiro, opondo-se à teoria de Tylor, chamou a nossa atenção para o facto de a ‘substância anímica’, entre muitos povos da Indonésia, não ser, em absoluto, idêntica à alma que depois da morte abandona o corpo. Pelo contrário, segundo Kruijt, esta alma, a que ele chama o ‘espírito do morto’, que não existe enquanto o indivíduo permanece vivendo, só aparece depois da morte; ao passo que a primeira, aquela que propriamente constitui a força vital do homem, terá, após a morte, um destino completamente diverso […]. Consideremos de relance os diversos destinos destas duas entidades […]. Sobre a ‘alma de vida’ sabemos […] que, depois da morte do indivíduo, ela regressará ao lugar donde partiu, o que significa, na grande maioria dos casos, que regressará ao céu e à divindade, junto da qual, por ocasião do nascimento, teve a sua origem […]. Conforme outras ideias igualmente difundidas, a ‘alma de vida’ permanece, depois da morte, nas proximidades da sepultura e, não raramente, em forma de pássaro ou de outro animal alado, para reingressar no corpo de algum recém-nascido, ou de qualquer animal, e, por morte deste, recomeçar outra existência humana […]. Esta ideia, que é a de um dualismo psicofísico, em que a alma é, no homem, aquilo que especialmente o liga à divindade, não necessitava, em absoluto, daquela outra representação, que é a do ‘Reino dos Mortos’, em que o homem individual prossegue a sua existência […]. Em oposição a esta ideia da ‘substância anímica’ ou ‘a alma de vida’, depara-se-nos, por conseguinte, aquela outra ideia, monística: a do ‘espírito do morto’, preeminentemente difundida entre os plantadores primitivos, em conformidade com a qual, entendido como uma unidade físico-espiritual, é concebido como se derivasse diretamente da divindade, isto é, por descendência biológica. A este último círculo de representações é que pertenceria, primariamente, a ideia de um ‘Reino dos Mortos’, reino em que o homem continua a sua própria existência individual […]. Em suma, desde as mais remotas épocas, encontrar-se-iam, ao lado uma da outra duas concepções acerca da vida […] uma das quais chama a nossa atenção para as entidades espirituais, situando-as, em obediência a uma perspectiva dualística, como fenômenos paralelos, ao lado das entidades materiais; enquanto que a outra concebia a vida como uma unidade e descobria o milagre divino nos processos biológicos da própria vida. Mas comum a ambos os círculos, é a ideia de que o homem não é concebível sem a divindade. Segundo a concepção dualística, o homem recebe da divindade a sua alma; na concepção monística, descende dela, diretamente, isto é, biologicamente […]. O dualismo psicofísico deu origem à representação de uma ‘substância anímica’ especial. E esta representação prescinde daquela outra, de um ‘Reino dos Mortos’, a qual, assim o cremos, pertenceria à concepção monística. Porém, os dois círculos, tocando-se, fizeram surgir a ideia de que uma ‘alma de vida’ especial regressa à divindade, após a morte, enquanto que outra ‘alma’ (‘espírito do morto’) empreende a sua jornada para o Reino dos Mortos.» (Jensen, pp. 347 e segs.)
A «situação» etnológica, tão claramente descrita por Jensen, é a que os Antigos, na sua maioria, se resignaram a verificar: «in tria hominem dividit, animam, quae in coelum abit, umbram quae ad inferos, corpus qu(od traditur) sepulturae» (Schol. Veron, ad Aen., V, 8, vol. m, p. 432, Thilo). Evidentemente, ao escoliasta de Virgílio, anima é a «alma de vida» ou a «substância vital», e umbra é o «espírito» ou «alma do morto». Mas o facto cultural permaneceria intacto e intangível até o momento em que a ciência da Antiguidade Clássica se apercebesse de que a anima «quae in coelum abit» é elemento «de um novo padrão de cultura», a expressão de «uma nova perspectiva da natureza e do destino do homem, estranha aos mais antigos escritores gregos» (Dodds, p. 135). O «Regius Professor of Greek» da Universidade de Oxford, neste capítulo de seu livro excitante, depende, em grande parte, de Karl Meuli, o pesquisador suíço que, num estudo importantíssimo («Seythica», em Hermes, 70, 1935) desenvolve convincente argumentação da seguinte tese: no século vil, na Cítia, e provavelmente na Trácia, os Gregos entraram em contacto com a cultura xamanista, «ainda existente na Sibéria, e que deixou vestígios da sua passada existência numa vastíssima área, que se estende ao longo de um imenso arco, que parte da Escandinávia e, através do maciço Euro-asiático, atinge a Indonésia» (Dodds, p. 140). De expor as características do xamanismo original, podemos prescindir: basta aludir às do xamanismo grego, e este é o que transparece, por exemplo, num fragmento de Píndaro (131, Sandys, Trenos): «o corpo de cada homem segue o apelo da morte omnipotente, mas resta ainda uma imagem da vida (aionos eidolon), pois só nessa prova provém dos deuses. Dorme ela, enquanto os membros se agitam; mas quando o homem dorme, frequentemente mostra em sonhos um presságio de alegria ou de adversidade vindoura.» Xenofonte (Kyroupaideia, VII, 7, 21) explica: «é no sono que a alma ostenta a sua natureza divina; é no sono que ela frui de certa penetração do futuro, o que, evidentemente, se dá por ser mais livre durante o sono». Donde se segue o podermos esperar que, na morte, ainda mais livre venha a ser a alma, já que o sono, para todos os viventes, é a mais aproximada experiência da morte. Escusado lembrar como, no século IV, Platão lança aos quatro ventos esta ideia que, em seu tempo, já não é nova. Todavia, o mais importante é notar que a alma que até então nunca fora uma «relutante prisioneira do corpo», mas, como sua própria vida, dele indistinta e inseparável, sob o impulso do novo padrão de ideias religiosas, passando a se lhe opor, «introduz na cultura europeia uma nova interpretação da existência humana» (Dodds, p. 139). Antes de Platão, alistam-se muitos nomes, uns provavelmente lendários, outros certamente históricos, dos que acolheram o «evangelho» xamanita: Abaris, Arísteas, Hermotimo, Zalmóxis, Orfeu, Epimênides e Empédocles.