46. «Nas páginas seguintes, ocupar-nos-á a questão de averiguar o papel que a alma tem desempenhado nas ideias acerca da existência após a morte. Procuraremos mostrar que, da variedade dos relatos colhidos pelos etnólogos, se destacam dois círculos de representações, cada um dos quais reflecte um conceito fundamental, inteiramente diverso do outro. Em primeiro lugar, há que apercebermo-nos da unidade de todas as representações do chamado ‘Reino dos Mortos’. As narrativas sobre viagens a esse reino não deixam subsistir a menor dúvida de que é o homem inteiro, e não, apenas, uma parte dele, que empreende a jornada — o homem inteiro […] mas sem seu corpo terrestre. Por outro lado, se é certo que, sobre a concepção da existência após a morte, o material etnológico nos aponta para a ideia de uma alma que, propriamente, não se pode designar como tal, visto que, no fundo, ela é todo o homem, também é certo que há outros testemunhos que efectivamente depõem sobre aquela alma que por ocasião da morte se separa do indivíduo. Foi, talvez, Kruijt quem primeiro, opondo-se à teoria de Tylor, chamou a nossa atenção para o facto de a ‘substância anímica’, entre muitos povos da Indonésia, não ser, em absoluto, idêntica à alma que depois da morte abandona o corpo. Pelo contrário, segundo Kruijt, esta alma, a que ele chama o ‘espírito do morto’ [85], que não existe enquanto o indivíduo permanece vivendo, só aparece depois da morte; ao passo que a primeira, aquela que propriamente constitui a força vital do homem, terá, após a morte, um destino completamente diverso […]. Consideremos de relance os diversos destinos destas duas entidades […]. Sobre a ‘alma de vida’ sabemos […] que, depois da morte do indivíduo, ela regressará ao lugar donde partiu, o que significa, na grande maioria dos casos, que regressará ao céu e à divindade, junto da qual, por ocasião do nascimento, teve a sua origem […]. Conforme outras ideias igualmente difundidas, a ‘alma de vida’ permanece, depois da morte, nas proximidades da sepultura e, não raramente, em forma de pássaro ou de outro animal alado, para reingressar no corpo de algum recém-nascido, ou de qualquer animal, e, por morte deste, recomeçar outra existência humana […]. Esta ideia, que é a de um dualismo psico-físico, em que a alma é, no homem, aquilo que especialmente o liga à divindade, não necessitava, em absoluto, daquela outra representação, que é a do ‘Reino dos Mortos’, em que o homem individual prossegue a sua existência […]. Em oposição a esta ideia da ‘substância anímica’ ou ‘a alma de vida’, depara-se-nos, por conseguinte, aquela outra ideia, monística: a do ‘espírito do morto’, preeminentemente difundida entre os plantadores primitivos, em conformidade com a qual, entendido como uma unidade físico-espiritual, é concebido como se derivasse directamente da divindade, isto é, por descendência biológica. A este último círculo de representações é que pertencería, primariamente, a ideia de um ‘Reino dos Mortos’, reino em que o homem continua a sua própria existência individual […]. Em suma, desde as mais remotas épocas, encontrar-se-iam, ao lado uma da outra duas concepções acerca da vida […] uma das quais chama a nossa atenção para as entidades espirituais, situando-as, em obediência a uma perspectiva dualística, como fenômenos paralelos, ao lado das entidades materiais; enquanto que a outra concebia a vida como uma unidade e descobria o milagre divino nos processos biológicos da própria vida. Mas comum a ambos os círculos, é a ideia de que o homem não é concebível sem a divindade. Segundo a concepção dualística, o homem recebe da divindade a sua alma; na concepção monística, descende dela, directamente, isto é, biologicamente […]. O dualismo psico-físico deu origem à representação de uma ‘substância anímica’ especial. E esta representação prescinde daquela outra, de um ‘Reino dos Mortos’, a qual, assim o cremos, pertencería à concepção monística. Porém, os dois círculos, tocando-se, fizeram surgir a ideia de que uma ‘alma de vida’ especial regressa à [86] divindade, após a morte, enquanto que outra ‘alma’ (’espírito do morto’) empreende a sua jornada para o Reino dos Mortos.» (Jensen, pp. 347 e segs.)
47. A «situação» etnológica, tão claramente descrita por Jensen, é a que os Antigos, na sua maioria, se resignaram a verificar: «in tria hominem dividit, animam, quae in coelum abit, umbram quae ad inferos, corpus qu(od traditur) sepulturae» (Schol. Veron. ad Aen., V, 8, vol. in, p. 432, Thilo). Evidentemente, ao escoliasta de Virgílio, anima é a «alma de vida» ou a «substância vital», e umbra é o «espírito» ou «alma do morto». Mas o facto cultural permanecería intacto e intangível até o momento em que a ciência da Antiguidade Clássica se apercebesse de que a anima «quae in coelum abit» é elemento «de um novo padrão de cultura», a expressão de «urna nova perspectiva da natureza e do destino do homem, estranha aos mais antigos escritores gregos» (Dodds, p. 135). O «Regius Professor of Greek» da Universidade de Oxford, neste capítulo de seu livro excitante, depende, em grande parte, de Karl Meuli, o pesquisador suíço que, num estudo importantíssimo («Seythica», em Hermes, 70, 1935) desenvolve convincente argumentação da seguinte tese: no século vii, na Cítia, e provavelmente na Trácia, os Gregos entraram em contacto com a cultura xamanista, «ainda existente na Sibéria, e que deixou vestígios da sua passada existência numa vastíssima área, que se estende ao longo de um imenso arco, que parte da Escandinávia e, através do maciço Euro-asiático, atinge a Indonésia» (Dodds, p. 140). De expor as características do xamanismo original, podemos prescindir: basta aludir às do xamanismo grego, e este é o que transparece, por exemplo, num fragamento de Píndaro (131, Sandys, Trenós): «o corpo de cada homem segue o apelo da morte omnipotente, mas resta ainda uma imagem da vida (aionos eidolon), pois só nessa prova provém dos deuses. Dorme ela, enquanto os membros se agitam; mas quando o homem dorme, frequentemente mostra em sonhos um presságio de alegria ou de adversidade vindoura.» Xenofonte (Kyroupaideia, VII, 7, 21) explica: «é no sono que a alma ostenta a sua natureza divina; é no sono que ela frui de certa penetração do futuro, o que, evidentemente, se dá por ser mais livre durante o sono». Donde se segue o podermos esperar que, na morte, ainda mais livre venha a ser a alma, já que o sono, para todos os viventes, é a mais aproximada experiência da morte. Escusado lembrar como, no século iv, Platão lança aos quatro ventos esta ideia que, em seu tempo, já não é nova. Todavia, o mais importante é notar que a alma que até então nunca fora uma [87] «relutante prisioneira do corpo», mas, como sua própria vida, dele indistinta e inseparável, sob o impulso do novo padrão de ideias religiosas, passando a se lhe opor, «introduz na cultura europeia uma nova interpretação da existência humana» (Dodds, p. 139). Antes de Platão, alistam-se muitos nomes, uns provavelmente lendários, outros certamente históricos, dos que acolheram o «evangelho» xamanita: Ábaris, Arísteas, Hermotimo, Zalmóxis, Orfeu, Epiménides e Empédocles.
48. Ábaris, medicine-man da Cítia, provém, segundo a lenda grega, da região dos Hiperbóreos, pelo que se denunciam os vínculos tradicionais, com Apoio e Pitágoras; cavalgando uma flecha, voa pelos ares até onde quer. Os testemunhos gregos vão de Pindaro a Celso, passando por Heródoto (IV, 36) e Platão (Charm., 158 B). O mais notável, descontada a fantasia dos pormenores, é um perdido diálogo de Heraclides Pôntico (frgs. 73-75, Wehrli). Arísteas do Proconeso, poeta épico do século VI, passava por discípulo de Apoio e teria sido agraciado também pelo dom de remeter sua alma, separada do corpo, aonde quer que o desejasse. O nome de Arísteas ainda está mais estreitamente ligado aos legendários Hiperbóreos, pois teria escrito uma epopeia em três livros (de que só restam fragmentos) acerca dos Arimaspos, espécie de ciclopes, em luta incessante contra os grifos, guardiães do ouro (Herod., III, 116, IV, 13 e 27; Aisch. Prom., 802 e segs.). De Hermotimo de Clazomenas também se conta que sua alma viajou por terras estranhas, enquanto o seu corpo permanecia em casa, inanimado (todas as referências em Rohde, Psyche, 2.a ed., vol. n, p. 94). Zalmóxis, ou Salmóxis, que, sem dúvida foi divindade trácia, humaniza-se nas fontes gregas (a principal é Herod., IV, 94-96), a ponto de o converterem, em escravo de Pitágoras, que lhe ensinou a doutrina da transmigração das almas, depois, por ele transmitida a seus conterrâneos. A imortalidade, pretendeu ele prová-la por um engenhoso ardil: de tempos a tempos escondia-se durante três anos numa câmara subterrânea e fazia que se propagasse a notícia de sua morte; findado esse lapso de tempo, reaparecería em público, «reencarnado». Orfeu é uma figura que, por demais conhecida, podemos omitir nesta sequência. Aliás, é bem notório o processo, mediante o qual, a moderna historiografia filosófica veio a concluir pelo compromisso designado por «orfeo-pitagorismo». Epiménides de Creta dormiu durante cinquenta e sete anos numa gruta sagrada da ilha, talvez aquela mesma em que Zeus nascera. Do Suda (s. v., cf. Diels-Kranz, 3 A 2) consta que despedia sua alma tantas vezes quanto [88] desejasse, e outras tantas a readmitia em seu corpo, e que, após a sua morte, se observou que a pele dele estava coberta de tatuagens. Sobre este último traço da lenda, Dodds anota que entre os Gregos a tatuagem só era usada para marcar escravos e, portanto, deparamo-nos aqui com um sinal da sua consagração como servus dei; mas o facto também aponta para a Trácia, onde as melhores das gentes eram tatuadas. Outro, que não comentariamos se Dodds não o mencionasse, é o facto, testemunhado por Diógenes Laércio (1,114), de que Epiménides se alimentava exclusivamente de um preparado vegetal (de «vegetal» não vemos qualquer vestígio em Diógenes Laércio) que «recebera das Ninfas e guardava num casco de boi». Dodds intercala por sua conta que o depósito do alimento num casco de boi tem razões só por Epiménides conhecidas. Mas, ao que nos parece, é por aí que se revela o segredo do preparado: a relação mítica, que liga geneticamente as abelhas ao cadáver de um boi (v. Verg., Georg., IV), de provável origem cretense, aponta para o mel, alimento de imortalidade. Finalmente Empédocles, com o qual nos encontramos em épocas mais esclarecidas pela investigação histórica — esse teria sido o último, e já extemporâneo, xamã grego. Alguns fragmentos dos Katharmoí («Purificações») aí estão para testemunhá-lo (pela ordem numérica da edição de Diels-Kranz): 112,115,117-121,125-129,146-147. Na lista dos xamãs gregos, entre Epiménides e Empédocles, intercala-se naturalmente o nome de Pitágoras. Aliás, é ao Crotoniata que se refere o frg. 129, cujo sentido se define pela convergência de todos os demais. A imagem que resulta é, com efeito, a de um complexo mental, inédito no mundo grego: se a imortalidade da alma e a transmigração, jamais separadas do núcleo original do pitagorismo, se conforma com a maioria das concepções expressas por esses fragmentos de Empédocles, não pode incidir sombra de dúvida sobre os contornos bem nítidos de uma doutrina, na qual a parte do homem, remanescente e permanecente fora do corpo, «não é um resto miserável (como a psyche no Hades homérico), mas o que dele é verdadeiramente vivo» (Gigon, 1945, p. 133). E podemos concluir este parágrafo que já vai longo, citando umas poucas linhas deste autor, entremeadas com um breve aceno prospectivo: «a alma cai numa radical oposição ao corpo; ela é o perfeito, e ele, o vulgar. Certo é que a oposição alma-corpo produziu muitos e bem amargos frutos, em todo o curso do pensamento filosófico e do desenvolvimento da consciência religiosa, mas não menos certo é que desencadeou, na investigação racional, o despertar do drama especulativo que abre com a oposição paralela, entre espírito e matéria. Também esta teve [89] infelizes consequências: algumas perduram, e não cessam enquanto não surgem na intenção de saná-las, uma razão dialéctica ou uma perspectiva de complementaridade. Em Pitágoras «está o ponto de arranque de todos os esforços antigos, em direcção ao conceito de espírito, como algo claramente oposto a toda a realidade material. O espírito apresenta-se, antes de mais, como a negação sistemática de toda a corporalidade, e só porque o espírito se lhe opõe, a matéria aparece como absolutamente ‘material’. A preocupação religiosa faz surgir o conceito de alma como objecto de inquietude e desemboca no conceito de espírito absolutamente incorpóreo, em oposição à matéria sem espírito. A filosofia jónica acha-se muito mais para aquém de semelhante posição» (op. cit., pp. 132-133).
[Eudoro de Sousa. Horizonte e Complementaridade. Sempre o mesmo acerca do mesmo. Lisboa, INCM, 2002, p. 85-90]