79. O fogo, em Heráclito, não é uma cifra da codificação filosófica da «natureza»; pelo menos, não o é, exclusivamente: encontramo-lo em fragmentos que nos falam da morte e da alma. O fogo e a morte, com o sono e a vigília, constam do frg. 26, um dos mais exacerbadamente discutidos, e que trasladamos, primeiro, a) na forma como o traduziu Bruno Snell (1949), e depois, b), segundo Jean Bollack (1972), para que o leitor possa fazer uma ideia das enormes perplexidades da exegese: a) «O homem, de noite, acende (por contacto) uma luz, quando seus olhos se apagaram. Vivendo, no sono toca no morto (no sono, ele é, por assim dizer, um morto aceso), vigilante, toca no dormente (é um dormente aceso)», b) «O homem toca a luz na noite, quando morreu para si, a vista extinta; mas, vivente, toca no morto, quando dorme, a vista extinta; toca no dormente, quando vigia». Diga-se, em transcurso, que as diferentes versões não resultam só de diferentes interpretações de um texto estabelecido de uma vez para sempre; o desacordo também vem a lume, quanto à decisão de manter ou eliminar algumas palavras do original, tal como nos foi transmitido por Clemente de Alexandria. Snell traduz e interpreta o texto estabelecido por Diels, eliminando apothanôn («tendo morrido»), que Bollack conserva, como conserva o segundo «a vista extinta», que Snell (e Diels) elimina; por isso, encontramos na versão b) um «quando morre para si», de que não há vestígios na versão a). O leitor mais exigente achará todos os resultados da interminável e acerba contenda filosófica em Zeller-Mondolfo (parte i, vol. iv, 1961) e, mais comodamente, em Mondolfo (1966). Também no frg. 26 se fala de um «alumiar-se» e de um «apagar-se» e, no original grego, as palavras são exatamente as mesmas; mas, enquanto em se tratando do frg. 30 (e 31), nunca se cogitou, que o saibamos, na ambiguidade do háptetai («acende» ou «toca») e haptómenon («acendendo-se» ou «tocando»), os intérpretes dividem-se, em se tratando do frg. 26: Bollack decide-se por «tocar»; Snell, embora assinalando a ambiguidade, optou por «acender» ou «alumiar» e, na opção, é evidente que comprometeu o sentido de um com o do outro fragmento. Mais uma vez, só em transcurso, seria o caso de perguntar, dando por certo que os dois fragmentos perseguem o mesmo sentido, se o frg. 26 converte a cosmologia em psicologia (ou escatologia), ou se o frg. 30 (e 31) converte a psicologia em cosmologia, ou ainda, se o confronto de ambos não convida a pensar que uma distinção das duas nunca foi, para Heráclito, objeto de sérias cogitações. A pergunta seguinte, mais importante e de muito maior alcance, concerne o que eventualmente se ganha do cotejo do fragmento cosmológico com o fragmento antropológico, para a melhor compreensão, tanto de um, quanto de outro. Antes de o fazer, convém advertirmo-nos de que nada resultaria em tão ilusório fracasso como o tentar estabelecer uma rigorosa correspondência entre os dois fragmentos, com a reservada ideia de que o próprio Heráclito tivesse querido estabelecê-la, nos mesmos termos em que os redigiu, ou em que foram redigidos. Escusamos de voltar ao frg. 30 (e 31), senão para nos lembrarmos de um «fogo sempre vivo» que «se alumia» e «se apaga», e de que, passando sobre a aparente contradição entre o «apagar-se» e o «alumiar-se» do fogo que «vive continuamente», temos de entender que um kósmos, em virtude do que se diz no frg. 31, é fogo apagado ou como que o rescaldo de um incêndio. O «acender-se» e o «extinguir-se», no frg. 26, sugere (mas apenas sugere) que se trata do mesmo fogo; mas aí, se o dormente é um «morto aceso», e o vigilante é «dormente aceso», ou se o sono queima a morte e a vigília queima o sono — no sentido em que se diz que uma lâmpada queima azeite —, então esta espécie de antropogonia corre ao invés daquela espécie de cosmogonia, expressa pelos frgs. 30 e 31 (recordemos, sem propósito de tirar conclusões, que em Empédocles também achamos o processo zoogônico como inversão do processo cosmogônico): que o fogo se torne cada vez mais vivo e o incêndio recrudesça, quando se passa do morto ao dormente e do dormente ao vigilante, é a mais natural das inferências; e, tão natural, supor que, por fim, nada reste por queimar. Mas onde está este «por fim»? Sem dúvida, na alma em seu estado mais puro, que é também o de puro fogo; — fogo que, por sua vez, «virado» em seu contrário, é corpo só. Daqui voltamos ao frg. 31 e às tropaí («viragens») do fogo cósmico: «primeiro, o mar». Ao lado, devemos ter presentes o início do frg. 36, «morte para as almas, o tornarem-se em água», o frg. 77, «para as almas, prazer ou morte, o tornarem-se úmidas», e o frg. 118, «alma seca: a mais sábia e a mais perfeita».
Eudoro de Sousa (79): Heráclito – Acepções do Fogo
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