59. «Sem dúvida, a deusa diz que o seu próprio sistema (da ‘Doxa‘) é ‘enganador’, o que não significa depreciação, mas advertência: não se pode equiparar o sistema das aparências ao sistema da verdadeira realidade. O aviso é tanto mais oportuno, quanto é certo haver algo de semelhante entre eles; de algum modo têm de ser semelhantes, pois havia que demonstrar que o mundo da aparência possuía uma realidade relativa. A porção de realidade que lhe cabe é determinada por sua relação com os dois princípios do Ser, e esses princípios são unicidade e unidade. Enquanto ente, a realidade é única (…) e una (…) porque ‘o que é’ está isento de ‘o que não é’. O sistema do mundo aparente, esboçado por Parmênides, também repousa sobre dois princípios, designadamente: dualidade (… ) e mistura, e estes são precisamente os que estão mais próximos dos verdadeiros princípios: a dualidade é o melhor que se segue à unicidade, e a mistura é a diversidade mais unitária. Assim, a mistura de dois elementos contrários (Luz e Noite) reflete, no plano do mundo aparente, a unidade do Ser. Esta reflexão não é uma imagem pura; todavia, é a que mais se aproxima (do modelo). Por isso, a deusa pode declarar, confiante, que nenhum mortal, jamais ultrapassará esta teoria.» (Verdenius, 1967, 116-117.) A citação extraída de um valioso e recente trabalho, nada acrescenta ao que acima ficou escrito acerca da relação entre a «Verdade» e a «Doxa»; mas vemos nela, bem marcados, os pontos em que o pluralismo de Empédocles e o idealismo de Platão tanto se opõem ao pensamento de Parmênides, quanto com ele se compõem. É evidente, em primeiro lugar, que o autor citado «platoniza» Parmênides, ao falar de uma imagem da verdade, reflectida no plano da aparência. Aliás, a «platonização» do Eleata é a tendência manifesta, sempre que, desatentos às recíprocas implicações das três partes do poema, e de cada uma delas na unidade da sua intuição original, se nos depare a identificação do Ser e do Não-Ser, respectivamente, com a Luz e a Noite. Que semelhante identificação seja abonada por autoridades como Fränkel, Deichgräber e Gigon, entre outras, não obsta a que a «simbólica da luz» só com Platão tenha feito a sua entrada solene e triunfante, na metafísica ocidental. O erro vem de longe e o responsável é Aristóteles (Met., I, 986 b, 27 e segs.): «Com efeito, (Parmênides), considerando que fora de ‘o que é’, ‘o que não é’ nada é, pensa que necessariamente só uma coisa existe, o Ente, e nenhuma outra (…). Mas, obrigado a levar os fenômenos em conta, e ao afirmar que o Uno segundo o conceito (katà tòn lógon) é múltiplo segundo os sentidos (katà ten aísthêsin), também afirma que duas são as causas e dois os princípios, o quente e o frio, como se dissesse o Fogo e a Terra, e põe o quente na ordem de ‘o que é’, e o outro na ordem de ‘o que não é’.» O breve comentário de Schwabl (1953, p. 52) assinala o alcance do mal-entendido, até o presente: «ora, os modernos tiraram daqui as mais latas inferências: o Ser da primeira parte («Via da Verdade») seria uma espécie de luz potenciada (potenziertes Licht), a própria Luz, sem a contrária Noite, que, por isso mesmo, também não se chamaria luz, mas Ser: e assim estabeleceram, no campo da investigação de Parmênides, a equação sobremaneira funesta: Ser (no domínio lógico) igual a Luz (no domínio estético) e Não-Ser (no domínio lógico) igual a Noite (no domínio estético)». Em verdade, não é por aqui que Parmênides pressente o platonismo, ou que Platão consente no eleatismo. (Eudoro de Sousa, “Horizonte e Complementaridade”)