A tradição conhece um’ Ηρακλείτου σύγγραμμα, um escrito ou, como também se diz, uma “obra” de Heráclito. Dela conservamos somente “destroços”. Temos que nos contentar com os “fragmentos” do escrito. Pensadores posteriores, Platão e Aristóteles, Teofrasto e outros eruditos da filosofia, Sexto Empírico e Diogenes de Laércio, o escritor Plutarco e também os padres da Igreja Hipólito, Orígenes, Clemente de Alexandria, citaram em seus livros “passagens” do escrito de Heráclito. As passagens citadas compõem os fragmentos de que dispomos. Alguns consistem em frases, outros em apenas uma frase, outros em partes de frases e palavras isoladas. Uma vez que a escolha das passagens citadas se determina pelo pensamento dos autores referidos e pelos escritos posteriores, só podemos descobrir o contexto em que a citação foi inserida através de uma observação precisa do lugar em que se acha, não ali de onde a citação foi extraída, mas nos escritos posteriores. As citações não nos transmitem o essencial, ou seja, a unidade orientadora e unificadora da estrutura interna do escrito de Heráclito. Apenas observando-se continuamente a unidade de sua estrutura é que se poderia perceber a que contexto pertence o fragmento. Só através de um tal ordenamento é que os trechos descontextuados e dispersos entre si poderiam ser reconduzidos ao seu contexto próprio e consistente.
Os fragmentos começaram a ser reunidos na Idade Moderna. Conhecemos hoje cerca de 131 fragmentos. Será possível retirá-los de um amontoado confuso e ordená-los? Através desse conjunto e, sobretudo, da importância do conteúdo de muitos fragmentos, nasceu a esperança de se reconstruir o todo a partir dos destroços remanescentes, tal como se pode fazer com os cacos de uma taça ou de um vaso grego. Mas as coisas não são tão simples assim, no que se refere aos fragmentos de Heráclito. Os cacos de uma taça encontram-se reunidos num mesmo lugar de escavação. Além disso, possuímos outras taças inteiras e bem conservadas. O escrito de Heráclito, no entanto, foi concebido uma única vez. Aqui não existe nenhum objeto de comparação possível. Por isso, qualquer tentativa de reconstruir o todo a partir dos fragmentos existentes fica entregue à arbitrariedade. Podemos, portanto, desistir desse negócio insensato de reconstrução da “pesquisa filológica”. Perguntamos simplesmente sobre o “contéudo” dos fragmentos e tentamos seguir no pensamento os pensamentos neles expressos.
Parece fácil dizer. Mas logo nos perguntamos qual dos 131 fragmentos deve ser visto como o coração e o núcleo do que pensa o pensador. O que significa: se já no começo de nossa discussão tentamos voltar a atenção para esse núcleo, qual dos fragmentos deve ser o principal objeto de nossa reflexão? Mais adiante, de onde tomaremos a perspectiva-guia para determinar a sequência dos fragmentos? Será que tudo não está fadado ao arbítrio? Ou existe realmente uma ligação? Estas perguntas são importantes, mas somente enquanto negociamos a ordem dos fragmentos de fora para dentro, afastando-nos do que é sempre a única necessidade, a saber, a experiência do essencial a partir da palavra desses fragmentos. Os fragmentos, no entanto, também precisam ser compilados para serem conhecidos e transmitidos.
Existe uma compilação dos fragmentos que os apresenta numerados numa sequência. Essa compilação foi elaborada pelo filólogo Hermann Diels, em 1901 (os fragmentos de Parmenides, por ele reunidos, foram publicados em 1897), e integrou a grande compilação de todos os fragmentos dos primeiros pensadores gregos, publicada pela primeira vez em 1903 sob o título Os fragmentos dos pré-socráticos. Os fragmentos são hoje citados e enumerados segundo essa edição. No momento não circulam edições em separado dos fragmentos de Heráclito. Sendo na maior parte bem curtos, vamos escrever os fragmentos no quadro e traduzi-los na sequência em que serão discutidos ao longo das preleções. Manteremos, naturalmente, a numeração usada por Diels. Mas não seguiremos a sequência instalada por esses números. De modo algum o fragmento que vem a ser o primeiro para Diels é, para nós, essencialmente o primeiro.
Ao traduzirmos e discutirmos os fragmentos em outra ordem de sequência, não pretendemos que a nossa ordem esclareça melhor e mais corretamente a estrutura do escrito de Heráclito. Precisamos renunciar inteiramente a tal pretensão. Suponhamos o impossível, que de repente fôssemos presenteados com o escrito integral de Heráclito. O que ocorreria? Os filólogos se veriam dispensados do trabalho exaustivo de reconstrução do texto. Nada aconteceria além disso. Pois é a partir daí que começa a tarefa da sua apropriação. Já faz muito tempo que dispomos dos diálogos de Platão, dos tratados de Aristóteles, mais próximos de nós que Heráclito. Possuímos os escritos e as cartas de Leibniz. Conhecemos a formulação integral e original das principais obras de Kant. Em si mesma, toda essa posse não nos oferece a menor garantia de que já “sabemos” o que as obras contêm. Esse conhecimento pode permanecer um mero conhecimento do passado, sem que a palavra dos pensadores nos acorde para o seu futuro histórico. O simples conhecimento “erudito” de seus conteúdos é tão destituído de história quanto a adaptação de seu conteúdo para as necessidades diárias. A posse bibliotecária dos escritos dos pensadores não garante que sejamos capazes, ou dotados, para seguir no pensamento o que aí foi pensado. Mais essencial do que conservar e possuir integralmente o escrito do pensador é relacionar-se, mesmo que à distância, com o a-se-pensar no pensamento desse pensador. Não aspiramos a um desempenho histórico-filológico capaz de nos proporcionar uma reconstrução do escrito. Tentamos nos preparar para que a palavra ainda por vir nos encontre, a partir de seu núcleo essencial. A discussão dos fragmentos que se quer pensante e, assim, adequada, deve obstinar-se apenas a fazer a experiência desse a-se-pensar. Não poderemos provar, previamente, se essa empresa será bem-sucedida e até que ponto. Tampouco poderemos computá-la posteriormente como “sucesso”. Isso não se deixa estabelecer “objetivamente”, mas nem por isso a tentativa se reduz a um empreendimento “subjetivo”. O a-se-pensar não é “objetivo”. Este pensamento não é “subjetivo”. Aqui não tem lugar a diferença entre sujeito e objeto. Ela é estranha para o mundo grego e, sobretudo, para o âmbito do pensamento originário. É por isso que perdem peso as perguntas e discussões sobre a possibilidade e impossibilidade de uma reconstrução adequada do escrito de Heráclito. Por último, reconhecemos que o fato de possuirmos a palavra do pensador originário apenas em fragmentos significa uma benção. Pois percebemos que exigem de nós, a cada vez, uma atenção adequada. No caso feliz de uma conservação integral das palavras originárias, poderíamos ainda mais facilmente enrijecer o entendimento, na pretensão de um saber-melhor, esse que acabou se desenvolvendo ao longo de todo esse tempo. Para concluir estas considerações preliminares, não será necessário afirmar que não pretendemos propor o “único e verdadeiro” Heráclito, para todos os séculos. Basta indicar um caminho para que a palavra de Heráclito receba um lampejo de verdade, isto é, de iluminação.
(HEIDEGGER, Martin. Heráclito. A origem do pensamento ocidental Lógica. A doutrina heraclítica do lógos. Tr. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998, p. 50-53)