hylê: material, matéria
1. Hyle, um termo puramente aristotélico, não tem as suas origens numa realidade diretamente percebida — como se passa no caso da extensão ou magnitude (megethos) — mas emerge de uma análise da mudança (Physica I, 190b-191a); não é conhecida diretamente mas por analogia (analogia, ibid. 191a8). A dificuldade em compreender a natureza da matéria está em que ela parece situar-se fora do âmbito do conhecimento (Metafísica 1036a): quando se separaram (aphairesis) todas as qualidades de um existente parece nada restar. Nem tão pouco a matéria se enquadra em qualquer das kategoriai visto que estas são predicados dela, enquanto ela não é predicado de nada; nem sequer é uma negação (Metafísica 1029a). É, em suma, potência (dynamis), tal como a forma é ato (De anima II, 412a).
2. Uma vez delimitada a natureza peculiar da hyle ela pode tomar o seu lugar entre as quatro causas das coisas (Physica II, 194b; ver aition), onde, tal como o eidos, ela é uma causa imanente (enhyparchon) (Metafísica 1070b). Serve também outra função: é o princípio da individuação. Visto que o eidos é indivisível (atomon) ele só pode servir para constituir um ser dentro de um dado gênero ou espécie; os indivíduos dentro da infima species são numericamente distintos em virtude da sua matéria (Metafísica 1034a, 1035b; a individuação das formas puras, Deus, inteligências, não é tratada; ver kinoun e confrontar diaphora).
3. A hyle é então o substrato primário da mudança (hypokeimenon; Physica I, 192a), a «coisa» que recebe o novo eidos (Metafísica 1038b; para os antecedentes platônicos, ver genesis). Mas chamar-lhe uma «coisa» é erro. A hyle é como uma substância (tode ti; ver Physica I, 190b, 192a) mas não é tal porque lhe faltam as duas principais caraterísticas da substancia: não é nem um existente separado (choriston) nem um indivíduo (Metafísica 1029a).
4. Tal como há vários tipos de mudança (ver metabole), assim também deve haver vários tipos de matéria que servem como substratos a estas mudanças (ver Metafísica 1042b. Muito notável entre estes é a matéria associada a uma mudança de lugar (hyle topike; ver phora) que não implica nenhum dos outros ou, para pôr a questão doutro modo, não está necessariamente acompanhada de «matéria genética e destrutível» (hyle gennete kai phtharte), e assim não está sujeita a genesis e a phthora (Metafísica 1042b, 1044b, 1050b, 1069b). Assim se estabelece a possibilidade da indestrutibilidade dos corpos celestes cuja única mudança é o movimento local (ver aither, onranioi). Para a distinção das matérias envolvidas na mudança substancial (genesis) e qualitativa (alloiosis), ver stoicheion.
5. Para Aristóteles a composição de um indivíduo, um Sócrates ou um Cálias, é um processo extremamente complexo que pode ser concebido como a imposição de uma sucessão de eide crescentemente específicos. Cada uma destas formas é imposta sobre uma matéria progressivamente mais informada, e assim há distinções na hyle que vão desde uma matéria primeira (prote hyle, matéria prima), o substrato da forma dos corpos primários ou stoicheia, terra, ar, fogo e água passando por uma série de matérias mais altamente informadas até à «matéria última» (eschate ou telentaia hyle), a matéria deste existente individual (De part. anim. II, 646a; ver Metafísica 1049a).
6. Aristóteles tinha a consciência de que o platonismo (e o seu mais remoto antecessor, o pitagorismo) se tinha movido numa direção semelhante (Physica I, 192a). Mas ambos seguiram Parmênides e chamaram ao conceito material o puro não-ser (me on; ver on), o que obviamente não era, visto que ela tanto precedia como sobrevivia à genesis (de fato a matéria é eterna), ou então identificaram-na com «o grande e o pequeno» (Metafísica 987b; ver dyas), o que é, no parecer de Aristóteles, uma confusão de grau entre um princípio genuinamente não-determinado e uma privação. Foi esta incapacidade de distinguir entre a hyle e a steresis que impediu que os platônicos chegassem a um conceito válido da matéria. Mais próximo do próprio pensamento de Aristóteles estava o Receptáculo platônico (hypodoche) do Timeu 49a que é (ibid. 51a) invisível e indiferenciado e que, como a hyle aristotélica, é indestrutível e só conhecido indiretamente por uma espécie de «raciocínio bastardo» (ibid. 52a-b). Há, evidentemente, diferenças. O que começa como «receptáculo» ou «matriz» (ver Physica I, 192a) é seguramente diferente do substrato, mas ainda mais afastada da hyle aristotélica é a descrição final dela como «área» ou «espaço» (chora; Timeu 52a), figura que, segundo o testemunho de Plotino (Enéadas II, 4, 11), levou alguns comentadores posteriores a sugerir que envolvia a noção de volume.
7. No estoicismo, onde tudo é material, a distinção aristotélica entre matéria e forma é, não obstante, conservada na distinção entre um princípio ativo (poiein) e um passivo (paschein) (D. L. VII, 134). Ambos são materiais mas o primeiro é eterno, «matéria prima», que é identificado com o logos (SVF I, 87). A diferença fundamental entre Aristóteles e os estoicos está, contudo, no campo da extensão. A análise aristotélica da mudança havia levado ao conceito da matéria como um substrato, como pura potencialidade (dynamis; ver Metafísica 1039b; De anima 412a, 414a), afim da substância, enquanto a extensão (megethos) é um acidente, i. é, uma forma, na categoria da quantidade (poson). Daqui, Aristóteles e depois dele Plotino (ver Enéadas II, 4, 8-2), afirmarem a incorporalidade da extensão, enquanto a análise estoica, baseada na ação e na paixão, leva à conclusão oposta (D. L. VII, 56; Cícero, Acad. post. I, 11, 39).
8. Os pontos de vista de Plotino sobre a matéria, que se encontram principalmente nas Enéadas II, 4, são uma reação tanto a Aristóteles como aos estoicos e baseiam-se na sua leitura dos textos-prova platônicos sobre o apeiron no Filebo (15d-17a, 23c-25b). Como Aristóteles, Plotino admite a existência de uma matéria inteligível (hyle noete). Mas enquanto a matéria inteligível de Aristóteles era uma entidade puramente conceptual envolvida no processo da abstração (aphaiiesis), a versão plotiniana tem um estatuto ontológico definido: é o correlato inteligível (o argumento presume a existência de um kosmos noetos em paralelo com o nosso kosmos aisthetos) da matéria sensível, e a sua existência é provada pela divisibilidade dos gêneros dos eide, como é indicado no Filebo (Enéadas II, 4, 4). A matéria corpórea é pois uma imagem (eidolon) da matéria inteligível.
9. Plotino também se opõe a Aristóteles sobre a relação entre matéria e privação (steresis). Aristóteles tinha criticado os platônicos por não fazerem a distinção entre elas (Physica I, 192a), mas Plotino reafirma (II, 4, 14-15) a identificação: matéria é privação. É, além disso, o indefinido ou ilimitado platônico (apeiron; ver também dyas que é descrito como indefinido, aoristos). Mas, diferentemente da chora platônica (correção aumentada da imagem da chora em III, 6, 12-19), a matéria plotiniana é derivada do Uno (II, 4, 5; V, 1, 5; ver Proclo Elem. theol. props. 57-59). 10. Finalmente, Plotino coteja Aristóteles sobre o problema da individuação. Na Metafísica 990b Aristóteles sustentara que a lógica dos argumentos dos platônicos lhes exigia que postulassem um eidos de cada coisa individual. Aristóteles furta-se a esta necessidade, como vimos, fazendo da hyle a causa das diferenças individuais. Mas Plotino (Enéadas V, 7) admite a existência dos eide dos indivíduos para este mesmo fim.
Para a equação da matéria e do mal, ver kakon; para os «materialistas» pré-socráticos, eidos. [Termos Filosóficos Gregos, F. E. Peters]