kardía: coração
1. Por trás do debate prolongado acerca da sede da alma que foi discutido em círculos filosóficos ergue-se uma fisiologia pré-filosófica que tinha, com efeito, decidido a questão e que, apoiada pela sólida autoridade de Homero, tendia a dominar até as crescentes provas médicas em contrário. O herói homérico sente (II. IX, 186; XIII, 493, etc.) e pensa (II. IX, 600; XXII, 296) com o phrenes ou diafragma e daí a posterior phronesis, pensamento ou sabedoria.
2. Um grande número de pensadores percorrem o mesmo caminho, sem dúvida encorajados pelas teorias médicas do valor vital que é transportado através do sistema pelo sangue. A teoria térmica do pensamento encontra o seu principal divulgador em Heráclito que identificou a alma com o fogo (frg. 36) e a relacionou com a consciência (Diels 22A16). Em Empédocles o sangue aparece como um fator ligado à percepção e a sede da percepção é localizada no coração (frg. 105). Talvez Demócrito também deva ser aqui situado, embora a prova seja contraditória (faculdade racional no peito em Aécio IV, 4, 6; no cérebro ibid. IV, 5, 1), e não foi, em caso nenhum, o seu calor vital que sugeriu a comparação dos átomos da alma e do fogo a Demócrito, mas antes a forma e mobilidade destes (Aristóteles, De anima I, 405a). Aristóteles chama ao coração a arche da vida, do movimento, e da sensação (De part. anim. 666a-b), e embora os epicuristas dispersassem a alma por todo o corpo (ver psyche), a faculdade racional (Lucrécio: animus) estava no peito (Lucrécio m, 141-142), tal como para os estoicos (SVF n, 879).
3. A outra escola de pensamento que localizava a sede da percepção no cérebro (enkephalos), teve a sua origem nos círculos médicos pitagóricos, especialmente com Alcméon de Crotona (Teofrasto. De sens. 26; ver também aisthesis) que sustentou que havia passagens (poroi) que ligavam os sentidos ao cérebro, posição à qual se disse ter chegado por autênticas dissecações do nervo óptico (Diels 24A11) e que reaparece entre os filósofos com Diógenes de Apolônia. Aqui, o raciocínio fisiológico é perpassado de considerações mais filosóficas, i.e., que o ar (aer) é a arche divina de todas as coisas, e a fonte da vida, da alma e da inteligência (frgs. 4, 5). O modo de ocorrência da percepção sabemo-lo por Teofrasto (De sens. 39-44). O homem inspira o ar que viaja, através dos vários sentidos, para o cérebro. Se o ar é puro e seco, o pensamento (phronesis) realiza-se (ver aisthesis e confrontar o texto hipocrático semelhante em Diels 64C3).
4. Sócrates ouvira falar da teoria do cérebro quando era jovem e interessou-se por ela (Fédon 96b). Deve ter contagiado Platão com este seu interesse, o qual, no Timeu, localiza a parte racional (logistikon) da alma humana na cabeça (44d) e faz do cérebro a fonte dos poderes reprodutores (73c-d; ver psyche).
5. Mas embora a questão continuasse a ser debatida (ver SVF II, 885; Cícero, Tusc. I, 9, 19) foi a opinião de Aristóteles que prevaleceu. Aristóteles conhecia, certamente, as asserções médicas da ligação dos sentidos com o cérebro, mas não estava convencido com a prova (Hist. anim. 514a). O que acha mais convincente é que não há sensação no próprio cérebro (De part. anim. 656a).
6. Plotino, todavia, seguindo a tradição platônica, continua a localizar a arche da sensação no cérebro, como ele tem o cuidado de dizer, «o ponto de partida (arche) da operação (energeia) da faculdade (dynamis), uma vez que é a arche da kinesis do instrumento (organon)» (Enéadas IV, 3, 23). (Termos Filosóficos Gregos, F. E. Peters)
O “coração” (thymos) é, de fato, mencionado nas Leis em diversas ocasiões, mas Platão parece inseguro quanto ao seu estatuto, ora colocando-o entre os desejos comuns, junto com o “prazer”, a “dor” e a “inveja” (Leis 863E7-8), ora distinguindo- (junto com o “medo”) do “prazer” e dos “desejos” (864B3-6). A mesma hesitação pode ser encontrada em 863B3, em que ele deixa aberta a questão sobre se o coração deve ser chamado de uma experiência (pathos) ou uma parte (meros) da alma. (T.M. Robinson, A Psicologia de Platão)