Ser/ente (ousia, on)
Como a maioria dos conceitos básicos da filosofia, o conceito de ser também não é independente, mas só adquire contorno com os múltiplos contraconceitos: ser e não-ser, ser e aparência, ser e devir. A contribuição genuína de Platão certamente consiste em ter sido o primeiro a pensar dessa maneira o conceito de ser: o conceito “ser” é firmemente estabelecido em si e, ao mesmo tempo, mantém múltiplas relações.
I. Em geral: Platão se apresenta como herdeiro dos primórdios da filosofia grega pelo fato de ter vinculado ao “ser” as propriedades, carregadas de valores, ou perfeições: imperecibilidade, imutabilidade, indivisibilidade e universalidade (cf. Parmênides, DK 28 B 8; Eéd. 80a-c; Banq. 211a; Rep. 508d, 527b). Por isso, para Platão, aquilo que não possui essas propriedades, ou seja, sobretudo a coisa sensível, não pode ser no sentido pleno e deve, ao mesmo tempo, ser entretecido de não-ser. Ele é o que está em devir, que “rola” constantemente entre o ser e o não-ser (Rep. 479d): ele só é na medida em que não é alguma coisa ou não ainda, ou não mais, é alguma coisa.
Se, portanto, Platão, na figura de Sócrates, está sempre perguntando o que é, por exemplo, virtude (Mên. 72a ss.), coragem (Laq. 190b ss.) ou saber (Teet. 145e), nessa pergunta já está implícito que nesse “o que” deve se tratar de uma forma do ser constante e imutável, que supera, fundamenta e explica toda ocorrência de uma ação corajosa ou o conhecimento de um estado de coisas determinado. A pergunta pelo “o que” de uma coisa é, ao mesmo tempo, a pergunta por seu “de onde”. De acordo com isso, esse “o que” ou essência própria de uma ou mais coisas também é propriamente, como inversamente essas coisas não são “verdadeiramente”. Platão dá a esse “o que” realmente existente, apreensível apenas espiritualmente, o célebre termo “ideia”. Em relação ao seu status ontológico, Platão também chama a ideia de ousia (Féd. 65d-e; Rep. 479c; Tim. 29c): à quididade de uma coisa também competem sua “entidade” ou ser verdadeiro. Em outras palavras: o conceito de ousia une em si aspectos quididativo-conceituais e aitiológicos, criadores de ser (Banq. 210e ss.; Fedro 246 ss.). Disso se segue que as ações concretas e os fenômenos sensíveis não são apenas formalmente determinados como justos, corajosos ou circulares etc. por um “o que” constante em si, mas também só adquirem seu ser por meio desse “o que”. Eles são na medida em que copiam ou imitam um “o que” transcendente a eles. Em última análise, para Platão, todo o cosmos é uma imitação projetada como cópia do que é eternamente (Tim. 28d ss.; 50 c ss.). (SCHÄFER)
Segundo estudo de P. Hadot (Plotin, Porphyre : Etudes néoplatoniciennes), é justamente no neoplatonismo que se dá uma maior atenção à chamada “diferença ontológica”, preconizada por Heidegger, a diferença entre ser e ente. A ênfase original dada ao Ser, enquanto Ente superior, cede algum lugar ao Ser, enquanto ser. Em Damáscio, esta “diferença” e por conseguinte um ensaio de reflexão sobre o ser enquanto ser, se dá através das palavras hyparxis e ousia, que caracterizam respectivamente o ser e o ente, o ser puro e o ser essência ou substância. Esta diferença no entanto é enfatizada em Marius Victorinus.
Hadot apresenta o momento histórico onde, na história do pensamento ocidental, o ser-infinitivo foi claramente distinguido do ser-particípio, sob a forma de uma distinção entre einai e on, transformada em seguida em uma distinção entre hyparxis e ousia nos neoplatônicos. Uma série de contingências resultaram neste momento histórico, a começar pela formulação empregada por Platão no início da segunda hipótese do Parmênides.
A segunda contingência histórica foi certamente a exegese neoplatônica do Parmênides, sendo a primeira delas que se conhece de Plotino. Ele faz corresponder a cada hipótese uma hipóstase, um tipo de unidade. A primeira hipótese (o Uno é o Uno) corresponde à unidade absoluta, quer dizer à primeira hipóstase, o Uno. Aí se encontra toda a teologia negativa. A segunda hipótese (O Uno é) corresponde a uma Unidade onde começa a se manifestar o Múltiplo, quer dizer ao Uno-Ente para retomar a terminologia de Plotino. Esta segunda hipóstase é para Plotino um segundo Uno, o Um-Múltiplo, quer dizer o primeiro número, a primeira ousia, a Ideia de Essência, princípio de todas as essências, a primeira Inteligência, o primeiro Inteligível. A ousia aparece assim em um segundo nível da realidade, no nível da segunda hipóstase e se funda na primeira hipóstase. Assim Plotino retoma Aristóteles e afirma que sempre a unidade funda previamente o ser.
A terceira contingência é por conta dos escrúpulos de um comentador neoplatônico do Parmênides. No fragmento 5 do “Anônimo de Turin”, vemos o comentador se aplicar na exegese da passagem do Parmênides: “Se o Uno é, é possível que seja e não participe da ousia?” Para o comentador Platão definiu o “Ente” como o “Uno participando da ousia”. Onde “participar tem o sentido de “ser parte com”, “formar um todo em se misturando com”, mas também o sentido neoplatônico de “receber uma forma que é o reflexo de uma Forma transcendente”. Nos dois casos “ser participado” equivale a “ser atribuído”, sendo no primeiro mistura de duas formas no mesmo nível ontológico e no segundo participação de um sujeito em uma Forma transcendente.
Resumindo a posição deste comentador:
O “é” ou “ser” puro = O primeiro Uno
O Uno que “é” = O segundo Uno
O “é” do Uno que “é” é derivado do “ser” puro. Este último é sem sujeito nem atributo, é absoluto. O “é” do Uno que “é”, ao contrário, é acoplado com um sujeito, com o segundo Uno que recebe este “é” derivado do “ser” puro.
A distinção entre ser-infinitivo e ser-particípio terá pouco eco em Proclo e Damáscio, mas vem de modo indicustível em Marius Victorinus, o primeiro Uno, o Pai da teologia cristã, é agir puro e ser puro (esse purum), não determinado e não participado, logo incognoscível, o segundo Uno, o “Filho” da teologia cristã, é o Ente, a primeira essência, que receb o ser do Pai. Boécio também vai introduzir uma oposição entre esse e quod est, que corresponde à oposição ente ser e ente.
Com efeito o neoplatonismo de Proclo e Damáscio conhece uma distinção ontológica muito próxima dessa, sob a forma de uma oposição entre hyparxis e ousia, seguramente proveniente da diferença ontológica entre ser e ente. De qualquer modo, claramente formulada em Victorinus que dá as seguintes definições de existentia e substantia (correspondentes a hyparxis e ousia): A existência difere da substância, posto que a existência é o ser em si, o ser sem adição, o ser que não está nem em outro nem sujeito de um outro, mas o ser em si, uno e só, enquanto a substância não tem senão o ser sem adição, mas tem também o ser-algo-de-qualificado. Pois ela está subjacente às qualidades postas nela e eis porque se chama sujeito.