Ora, o ponto de vista platônico tem um nome e pode ser designado: uno e múltiplo. A perspectiva própria do pensamento platônico é, pois, a da relação, ou melhor, de uma certa relação, entre unidade e multiplicidade, que a lógica que tradicionalmente sobre ela incide, de matriz aristotélica, não pode apreender sem imediatamente alterar.
É certo que também a perspectiva de toda a tradição filosófica e de algum modo o eixo fundamental da lógica que a serve pode ser caracterizada como uma perspectiva de uno e múltiplo – pelo que se diria não ser deste modo que se afirma a diferença do filosofar platônico. E, como é igualmente certo que é outrossim uma perspectiva de uno e múltiplo a que, com justiça, semelhante tradição tem, desde Aristóteles, encontrado na base do pensamento platônico, dir-se-ia neste ponto que não é decerto também por aqui que se pode afirmar a diferença de qualquer interpretação que repita esse encontro, enquanto justamente o repete.
O problema é, todavia, o de que essa perspectiva de uno e múltiplo não é a mesma nos dois casos – ou, de outro modo, que a lógica do pensamento platônico nunca é uma lógica aristotélica antecipada. E nesta medida, para circunscrever o proprium do filosofar platônico, não basta apontar o uno e o múltiplo como sua perspectiva reitora: é preciso perspectivá-la platonicamente, de tal modo que o próprio ponto de vista platônico seja visto platonicamente e a própria questão do uno e do múltiplo preliminarmente circunscrita no específico sentido que lhe atribui Platão.
Ora, Aristóteles -e com ele toda a tradição que nele teve início – pensa a questão do uno e do múltiplo em Platão como uma relação de hen epi pollon, de «uno sobre o múltiplo», no sentido da recondução de cada conjunto de realidades diversas à unidade que está suposta na sua própria conjugação, ou, de outro modo, no sentido da subsunção de toda multiplicidade de particulares de um mesmo tipo sob a unidade desse tipo.
Nesta leitura, é certamente em Platão e na própria letra platônica que Aristóteles se inspira: se é certo que a mais canônica descrição da ideia platônica é aquela que a radica no costume de «pôr uma certa ideia, cada uma única, para toda a multiplicidade a que atribuímos o mesmo nome.» (R., X, 596a) O que entretanto já oferece fundadas dúvidas é que o pensamento platônico pense a questão do uno e do múltiplo apenas ou primeiramente daquele modo, quer dizer, que ele seja apenas esse pensamento do uno e do múltiplo.
Uma sustentação cabal desta tese é impensável neste contexto: pois esse é o objectivo da presente investigação na sua totalidade.
Todavia, se ela não pode ser aqui liminarmente sustentada, pode entretanto ser resumidamente antecipada. E tal o que se torna possível por um breve acompanhamento da questão platônica, i. e., daquela situação que primitivamente convoca o pensamento platônico e do modo por que ele escolhe corresponder-lhe.
Ora, a questão platônica pode ser consensual e minimalmente registada do seguinte modo: como uma questão pelo sentido da realidade.
A realidade é, contudo, sentida pelo pensamento platônico, e, em geral, pelo pensamento grego, a partir da constatação de as coisas serem. Quer dizer, é em primeiro lugar, o facto de as coisas serem – e, em particular, de serem algo e, em particular, de serem o que são-, não o facto de se darem como coisas ou o simples facto de haver coisas, que impressiona e filosoficamente espanta o pensar grego e platônico. E, por isso mesmo, tal pensamento, quando reconduzido ao seu fundo questionante, vem a ser justamente o interrogar pelo real enquanto real, na dupla direção apontada pela circunstância de a realidade do real consistir no facto de as coisas serem e serem o que são.
A questão que implicitamente anima o pensamento platônico é, portanto, a seguinte: em que consiste o ser das coisas, enquanto elas são o que são? E a resposta, em que tal pensamento ultimamente se resume, é: a ideia.
A esta luz, toda a filosofia platônica é ontologia. Mas dizê-lo significa, evidentemente, assumir que a questão platônica é esta, bem como que é esta igualmente a sua resposta: e também que todo o pensamento platônico, nas suas decorrências epistemológicas, éticas, políticas ou estéticas, se funda na teoria onde essa questão e essa resposta são postas em relação, i. e., na teoria das ideias.
Ora, é justamente a teoria das ideias que exige a questão do uno e do múltiplo para ser instituída, bem como para ser platonicamente compreendida.
Com efeito, o facto fundador de tal teoria é precisamente a consciência de que, se as coisas são algo, aquilo que as coisas são não se confunde todavia com elas, enquanto tais coisas, pelo que no cerne mesmo da realidade reside uma diferença fundamental que é necessário interpretar, qual é a diferença entre as coisas que são e aquilo que cada uma é.
Ora essa diferença é já a relação platônica entre uno e múltiplo. É-o, porque o que precisamente diferencia as coisas do seu ser é a multiplicidade daquelas perante a unidade deste; mas esta multiplicidade não é imediatamente a da pluralidade de instâncias dentro de cada espécie, quer dizer, não é a da pluralidade de entes, de resto irredutivelmente diversos, que são da mesma espécie, tal como esta unidade não é a de uma única espécie para uma multiplicidade de coisas irredutivelmente diversas, como se exigiria segundo uma perspectiva de hen epi pollon: a multiplicidade que aqui se alega é justamente a pluralidade de «coisas» que cada coisa, para o ser, necessariamente é e a pluralidade de modos pelos quais cada coisa, para o ser, necessariamente vai sendo, tal como a unidade que neste ponto se afirma não é senão a do ser uno que essas coisas vão sendo multimodamente, a do ser uno que as coisas são já em intrínseca multiplicidade.
Por isso mesmo, entretanto, não só esta diferença é já a relação platônica entre uno e múltiplo, quanto é já tal relação enquanto problema: i. e., é já a questão do uno e do múltiplo. Pois que, manifestamente, se o ser das coisas é uno, mas o mesmo tempo as coisas são isso de um modo múltiplo, o ser das coisas e o que elas são, sendo o mesmo, parece aqui, simultânea e paradoxalmente, ser diverso.
O enquadramento desta questão constitui justamente a teoria das ideias. E a possibilidade de uma resposta – que não será senão o enunciado da própria possibilidade da questão enquanto tal – passa, como se verá, pela distinção de dois planos irredutivelmente distintos, qual é o plano das ideias, i. e., o plano do ser, e o plano das suas instâncias, i. e., das coisas particulares, por referência aos quais o próprio paradoxo se dissolve.
Nessa resposta, que o presente trabalho se ocupará exclusivamente a expor, ver-se-á então que a relação uno-múltiplo não pode ser uma relação de «uno sobre o múltiplo», senão que a ideia se descobre no particular, como seu ser, e o particular se reencontra na ideia, como sua intrínseca «particularização», de tal modo que o uno está já sempre no múltiplo e o múltiplo sempre já no uno, constituindo, nessa circularidade, uma identidade dialéctica entre o uno e o múltiplo.
O esclarecimento desta identidade, na sua possibilidade, no seu sentido e nas suas consequências, é que constitui a especificidade da teoria das ideias. Será a esse esclarecimento que dedicaremos o essencial da análise que se segue, procurando através dela circunscrever o sentido da ideia, do particular e da sua relação no pensamento platônico.