Segundo Gwenaëlle Aubry (Plotin. Traité 53. Paris: Cerf, 2004, p. 19-22), o desafio do Tratado 53 [das Enéadas de Plotino] reside na identificação deste “ti mesmo” que o preceito délfico propõe [conhece-te a ti mesmo], ou impõe, como objeto de elucidação. Ora, para tal a conversão à interioridade não basta para desvelá-lo. De fato, ela não nos dá então acesso senão ao mim mesmo sensível, empírico, ao sujeito apaixonado. O tratado se abre assim sobre uma litania das paixões (Eneada-I, 1, 1). Eis aí os dados imediatos da consciência, o que, do sujeito, se revela de pronto. As paixões valem como a experiência primeira, a tonalidade fundamental do mim mesmo sensível, encarnado, aprisionado ao que Plotino chama a “solicitude”, quer dizer o cuidado exclusivo, não de si mesmo, mas do corpo em si. Todo o esforço do tratado (a meta visada por Plotino que o escreve, ao mesmo tempo que proposto a nós que o lemos) vai portanto consistir em desviar a consciência deste objeto imediato e fascinante [o corpo] para orientá-lo em direção à alma impassível e separada na qual reside a identidade essencial. Assim, o trabalho de definição imposto pelo preceito délfico é indissociável de um trabalho ético: o si mesmo não pode ser determinado senão ao preço de um desprendimento do objeto primeiro da identificação [ o corpo]. A definição requer uma nova orientação da consciência que é, ao mesmo tempo, mutação da identidade: para saber o que se é verdadeiramente, é preciso se desprender disto que não se é, mas cuja presença é tão pregnante, tão insistente, que então se crê não ser senão isso.
De solicitude, a consciência deve portanto ter atenção; ela deve se voltar do corpo — suas necessidades, suas paixões, sua urgência, sua fragilidade — para se orientar em direção à alma separada, ato puro, pura contemplação. Liberada da cura deste falso si-mesmo que é o corpo, o mim-mesmo terá então consciência disto que é em sua essência. Cessando de se tomar pelo que ele não é, ele só terá a tornar-se o que ele é. [Veja também Primeiro Alcibíades]