Mas para que não apareça um epicurista a dizer que, se Deus age muito, é perturbado pela reflexão e sobrecarregado de trabalho, devemos lembrar que Deus não precisa de reflexão nem de escolha, porque pode realizar a sua obra pelo seu próprio ser. De fato, se o ser divino não tivesse poder suficiente para poder trabalhar por si mesmo, mas precisasse de uma orientação diferente do seu próprio ser, certamente que o ser de nenhuma outra coisa produziria nada por si mesmo. Ora, de fato, as qualidades dos corpos agem umas sobre as outras sem reflexão. É em virtude da escolha, e não em virtude do ser, que o sol ilumina o universo, que o fogo aquece, que a alma sustenta o corpo? Consequentemente, mesmo as coisas que agem por escolha também fazem algo pelo seu ser natural, isto é, por um poder que está enraizado no próprio ser. Pois a alma do homem, embora faça muitas coisas por escolha, dá vida ao corpo sem escolha, pelo seu próprio ser. Não é a própria escolha, em certa medida, uma obra da alma? E esta obra vem do próprio ser da alma, sem qualquer escolha prévia, de modo que esta primeira escolha não precisa também de outra escolha prévia e esta de outra. Deste modo, cada obra da alma necessitaria de inúmeras escolhas antes de começar a realizar-se, e nunca começaria, porque o infinito é intransponível. Concluamos: se a ação que é realizada pelo próprio ser natural existe em todas as coisas, mas não a ação que é realizada por escolha, pois os corpos não têm escolha, e se mesmo a ação que é realizada pelo próprio ser e pela natureza precede sempre o próprio ato de escolha e de reflexão, é absolutamente claro que a ação que é realizada pelo próprio ser é própria da causa universal e primeira, que é Deus, de modo que a ação primeira e universal pertence ao agente primeiro e universal.
A ação que é realizada pelo ser é realizada sem preocupação ou esforço. É assim que o Sol, por um só ato, ilumina muito facilmente infinitos seres e os gera, iluminando-os. O fogo aquece muito facilmente um grande número de seres ao mesmo tempo. A alma alimenta o corpo e assimila nele muitas coisas ao mesmo tempo, sem preocupação nem esforço. Assim, Deus, através do seu ser, que é uma espécie de centro muito simples das coisas, do qual todas as outras coisas partem como linhas rectas, põe em movimento com um simples sinal tudo o que dele depende. No entanto, entre este primeiro agente e os outros há esta diferença: diz-se que o primeiro agente opera pelo seu ser, de tal modo que atua pelo seu puro ser, ao passo que os outros operam pelo seu ser, isto é, por um poder natural ou, se assim posso dizer, essencial. Assim, a operação que é efetuada pela potência essencial é anterior à operação que provém da reflexão e, por sua vez, é ultrapassada por aquela que é efetuada pelo ser puro. E assim como o que é realizado pela potência é mais fácil do que o que é realizado pela reflexão, também o que é realizado pelo ser puro é mais fácil do que o que é realizado pela potência.
[FICINO, M. Théologie platonicienne de l’immortalité des âmes. Raymond Marcel. Paris: Les Belles Lettres, 1964]