reminiscência

Reminiscência/anamnese (anamnêsis)

I. Os fundamentos em Platão: além da doutrina das ideias, a doutrina da alma é um dos mais importantes elementos de sua filosofia. Apesar do fato de que não há da parte de Platão uma doutrina elaborada nem das ideias nem da alma, podemos entretanto extrair dos diálogos os conteúdos essenciais de ambas as doutrinas como germes de uma teoria (sobre a teoria platônica das ideias, cf. Ross 1953, p. 11-21). A alma imortal tripartite (logistikon, thymoeides, epithymêtikon, Rep. 435a-441c, especialmente 440c e 441a) obtém dos deuses, antes da inserção num corpo, da “incorporação” (Tim. 42e-43a), a possibilidade da visão das ideias no lugar supraceleste (hyperuranios topos, Fedro 247c; ver também Fedro 249b-c e 250b e Tim. 41d-e; cf. Lee, S.-I. 2001, p. 136-139). Portanto, a alma olha inicialmente para as ideias como o verdadeiro SER e como o fundamento dele (cf., entre outros, Beierwaltes 1980, p. 9-12). Se a alma, porém, chega a um corpo, ela perde esse saber que foi visto. Mas ela não esquece totalmente o que viu no hyperuranios topos, pois ela possui o dom da reminiscência, da anamnese (anamnêsis) desses conhecimentos. Diferentemente da anamnêsis, a hypomnêsis é uma simples lembrança de fatos ou informações esquecidos (Fedro 274c-275b). Como mostra o trecho Banq. 209e-212c, os dados sensíveis fenomênicos servem como mero estímulo exterior para o movimento interior da anamnese: o homem vê algo de belo na Terra, e, por isso, sua alma se relembra do belo, que sempre é, incriado e eterno; lembra-se, portanto, da visão da ideia do belo (Banq. 211c) no lugar supraceleste no momento antes de sua “incorporação”. A anamnese é, além disso, fundamento de um argumento importante, talvez até mesmo o mais importante, em favor da preexistência, do renascimento e da imortalidade da alma (Mên. 85d-86c e Féd. 76d-77a; cf. Waldenfels 1961, p. 129 s.), pois a alma não podería se lembrar de conhecimentos, obtidos antes ou depois de sua existência no corpo, se ela fosse mortal e perecesse juntamente com o corpo. Durante sua permanência no corpo, a alma anseia por essa visão das ideias, especialmente a ideia do Bem. Ela anseia por retornar à sua origem, e nisto ela levanta o homem com seu corpo, como o mostra particularmente o andar ereto. Além dos diálogos Banquete, Fedro e Timeu, assim como Teeteto (191 c-196c) e Filebo (34a-c), podemos encontrar coisas decisivas sobre a teoria da anamnese justamente nos diálogos Mênon (80d-86c) e Fédon (72e-84b e 91e-92e) (cf. ElUBER 1964, p. 41-45; Guthrie 1975, p. 345 s.; Ebert 1994, p. 51-56; também Reale 1996, p. 77-80). Nisto se deve sempre observar que a filosofia de Platão não se converte em seu oposto: não é com base nos fenômenos que as ideias devem ser fundamentadas, mas ocorre exatamente o inverso, as ideias fundamentam o Ser dos fenômenos (Féd. 72e-78b; cf. Lee, S.-I. 2001, p. 123-136). Os dados dos sentidos não são incondicionalmente necessários para ter a anamnese. Uma conversação com alguém que desconheça as coisas questionadas pode provocá-la, como o mostra a conversa de Sócrates com o escravo no Mênon (82b-86c; cf. Waldenfelds 1961, p. 115-124; LEE, S.-I. 2001, p. 97-119). Aqui se torna nítida a arte socrática da parteira (maiêutica, de maieutikê; cf. Teet. 148e-151d, especialmente 150b: Tê de g’emê technê tês maieuseôs (…), “Da minha arte de parteira (…)”), que “faz vir ao mundo” um pensamento no espírito humano pelo fato de Sócrates conversar com alguém sobre um problema e tirá-lo da perplexidade (aporia, por exemplo Mên. 84a-d; ver APORIA), conduzindo-o à solução correta (Mên. 84d-85c). Esse pensamento é uma reminiscência, uma anamnese. Portanto, todo o aprendizado é um relembrar na alma. Sem dúvida, por ocasião da anamnese na alma o homem toma impulso nos fenômenos transitórios para, no melhor dos casos, ascender até o conhecimento da ideia do bem. No entanto, na filosofia de Platão, é preciso sempre pensar a partir das ideias, do verdadeiro ser, que primeiramente tornam possíveis o pensamento e os fenômenos e que os mantêm no ser pela participação nas ideias (participação = methexis, Parm. 132d; ver também Féd. 100c e 101c; Rep. 476d, assim como Banq. 211b). Portanto, a anamnese se orienta sempre pelas ideias, pois é uma reminiscência da alma na forma de uma visão interior das ideias pela alma (Hirschberger 1980, I, p. 91). Os dados dos sentidos, é verdade, dão um primeiro impulso nisto, mas eles não são de modo algum suficientes para a anamnese. A alma precisa, além disso, ser instruída (Apol. 29d-30b e 36c; Crít. 48b; também Féd. 80e-82c e 107d e Alcib. 1 130e e 132c), para poder aproveitar os impulsos da percepção sensorial e assim chegar finalmente à visão das ideias. Nesse processo a alma, enquanto continua no corpo humano, permanece sempre entre (metaxu, Banq. 202d-e) o mundo sensível fenomênico e o mundo numênico das ideias. Por ser uma compreensão puramente intelectual, essa contemplação das ideias tem uma qualidade mística, ainda que não devamos entender Platão diretamente como um místico (cf. Wehr 1995, p. 17-24), pois ele prefere o caminho do conhecimento à introspecção pura. Sem dúvida, o conhecimento do mundo das ideias, a visão das ideias ocorre repentinamente (exaiphnês, Carta 7 341c-d; ver instantâneo), mas antes o espírito humano deve avançar laboriosamente pela ponderação dialética até o nível das ideias. Numa discussão sobre a filosofia da natureza de Anaxágoras, o Sócrates platônico chama esse avanço dialético do espírito humano até as ideias de “segunda melhor viagem por mar” (deuteros plous, Féd. 99c-d; cf. Reale 1996, p. 72-77). Assim como um barco a vela na segunda melhor viagem avança de porto em porto pela costa, para, depois de desvios, chegar ao porto de destino, o espírito humano também pode avançar de fenômeno em fenômeno e de concepção em concepção até o âmbito das ideias. A anamnese deve, portanto, ser entendida como compreensão intelectual do mundo das ideias pela alma. As ideias e, especialmente, a ideia do bem são, segundo Platão, o próprio ser; mas o ser é verdadeiro. Por isso, a anamnese é o conhecimento da verdade; de um lado, ela forma, de certo modo, um parêntese entre teoria do conhecimento e metafísica no pensamento de Platão e, de outro, abre o caminho para a ética, pois o conhecimento do bem necessariamente conduz à boa ação (ver EDUCAÇÃO). Apenas a alma, por sua semelhança qualitativa com as ideias, pode realizar esse conhecimento da verdade (anankaion, houtôs hôsper kai tauta estin, houtôs kai tên hêmeteran psychên einai, “então necessariamente nossa alma deve ser constituída tal como isto (a ideia) é constituído”, Féd. 76e; cf. Ross 1953, p. 213-215; Huber 1964, p. 583-588); aqui se aplica, seguindo Empédocles, a noção de que o igual é conhecido pelo igual (homoion pros homoion, “igual por igual”, Tim. 45c; He de gnôsis tou homoiu to homoiô, “o conhecimento do igual pelo igual”, Aristóteles, Metafísica 1000b; ver também De anima 404b e Sexto Empírico, Adversus mathematicos 7 (= Adversus dogmáticos 1) 119-122). Platão fundamenta sistematicamente a teoria da correspondência da verdade: um juízo é verdadeiro se corresponde ao estado de coisas correspondente, ao ser e, portanto, à ideia. A teoria da correspondência continua a ser a teoria da verdade dominante até a alta escolástica. Ela é definida por Tomás de Aquino do seguinte modo: veritas est adaequatio rei et intellectus, “a verdade é a adequação entre coisa e intelecto” (Tomás de Aquino, Quaestiones disputatae de veritate, q. 1, a. 1 e a. 2; ver também Summa contra Gentiles I, c. 59). (SCHÄFER)


A doutrina da reminiscência, que pode ser sinteticamente expressa pelo princípio segundo o qual “conhecer é recordar”, é exposta por Platão no Mênon e no Fédon e é mencionada outra vez no Fedro. No Mênon é introduzida para solucionar o aparente paradoxo presente no ato de aprender. Como podemos aprender aquilo que ignoramos totalmente? E se não o (91) ignoramos, então será já sabido, razão pela qual aprender se torna supérfluo (80e). Nesse diálogo, Sócrates demonstra sua tese com um experimento prático. Um escravo, que nada sabe de matemática, consegue resolver corretamente um problema de geometria apenas respondendo às perguntas de Sócrates, o qual não lhe havia fornecido de antemão nenhum conteúdo que o ajudasse (82b-85b). Isso demonstra que o escravo colocou em prática conhecimentos de que já dispunha desde o seu nascimento (e aqui Platão conecta, como também fez no Fédon, a doutrina da reminiscência com a doutrina da metempsicose, ou melhor, da transmigração das almas de um corpo para outro).

Muito mais elaborada e filosoficamente interessante é a demonstração presente no Fédon (72e-77b). Dizemos que “recordar” é a experiência mediante a qual a noção de uma determinada coisa nos faz vir à mente a lembrança de uma outra diferente. Por exemplo, vendo um objeto pertencente a certa pessoa, lembra-mo-nos dela, mesmo que a mesma não esteja presente. Esse tipo de rememoração ocorre entre duas coisas diversas. Mas existe também um caso analogo que ocorre entre coisas similares. Por exemplo, se alguém observar uma pintura de Simias, logo sua memoria se reporta à imagem de Símias em carne e osso.

O mesmo gênero de relações pode ser aplicado à relação entre ideias e coisas. Dizemos, por exemplo, que o igual é alguma coisa, significando não a igualdade concreta de madeiras ou pedras, mas alguma coisa de diferente e de ulterior em relação a todas essas (92) igualdades, ou seja, o igual em si, e assim conhecemos o que é (74a-b). Esse igual nos vem à mente, a saber, “é recordado”, a partir das igualdades que vemos no mundo empírico (mais ou menos como o retrato de Símias relembra o Símias real).

Por outro lado, a experiência não pode ser a verdadeira fonte de onde aprendemos a noção do igual em si, porque os casos de igualdade que provamos através da experiência são todos deficitários em relação à igualdade perfeita, e nós percebemos essa falha (74d-e). Essa percepção é possível, porém, apenas se possuirmos antecipadamente a noção da igualdade em si, sem a qual não podemos dizer que os iguais concretos são defectivos. Isso significa que “antes de nascer e logo depois de nascido, já conhecíamos não só a igualdade e, por conseguinte, o maior e o menor, mas também todas as coisas desse gênero; porque não se trata de raciocinar só sobre o igual, mas também sobre o belo em si e o justo em si, o sagrado, em suma, como dizia, sobre todas as coisas às quais nós, interrogando e respondendo, damos o sigilo da expressão aquilo que é’” (75c-d).

Resulta necessário que no ato do nascimento o homem possua de algum modo as ideias. A experiência nos comprova que não se pode tratar de um inatismo perfeito, ou seja, de um saber já realizado desde o início, porque os homens nascem ignorantes e aprendem no decorrer do tempo. Mas pelo fato de o homem não poder nascer sob um estado de completa ignorância (até porque, se fosse assim, a aprendizagem seria inexplicável), (93) devemos pensar em uma forma intermediária entre saber e não saber, como no caso em que alguém teve um saber pleno, mas agora se esqueceu. O trauma do nascimento é a causa desse esquecimento que, porém, não anula totalmente os resquícios do saber, o qual, de certa forma, será rememorado a partir do contato com a experiência.

Eis a via intermédia que procurávamos. Não é de se espantar que os homens não consigam responder completamente à pergunta socrática, e que não se encontre nos escritos platónicos a definição de uma ideia. Os objetos aos quais esta pergunta se refere, de fato, têm uma natureza metafísica, ou seja, não estão atualmente disponíveis ao conhecimento da alma encarnada. O que não significa, todavia, que os homens não possuam de todo alguma noção. Em suas almas estão presentes as recordações esmaecidas de tudo o que viram antes de nascer. Isto explica porque eles conseguem entender do que se trata quando se alude a conceitos universais, mesmo não tendo tido uma experiência atual, e também porque são capazes de exprimir opiniões sensatas sobre o assunto (embora não possam conhecê-lo de modo exaustivo). A análise de outras passagens do Fédon nos permitirá confirmar esta conclusão.

TRABATTONI, F. Platão. [s.l.] Annablume, 2010.