se estar disposto [διατίϑεσϑαι]

A diferença entre uma situação que nos acontece e a sua mera apresentação reprodutora e imitadora é determinada pela possibilidade de o humano ser afetado por diferentes disposições [[Rep. 603c10. Cf. LSJ, II.]]. Ao tematizarmos as afetações disposicionais produzidas por uma determinada situação em que nos encontramos, alheamo-nos de algum modo da capacidade de sermos afetados, ou, antes, transformamos a qualidade de afetação, distanciando-nos teoricamente dela, como se nada tivesse sido. Toda a alienação teórica cria também um distanciamento relativamente ao que nos sucede, fazendo que tudo o que nos acontece seja visto como que a suceder a um «alter ego» e não verdadeiramente a nós? [[Cf. Féd., 241a-c; quando os ἄρχοντες são ο νοῦς καὶ σωφροσύνη ἀντ’ ἔρωτος καὶ μανίας sucede que, uma vez que o amante se encontra numa outra situação da alma e, assim, também τὰ παιδικά λέληϑεν. Dessa forma, tendo obtido ο νοῦς e estando com o coração a salvo, fará tudo para não cair na mesma situação anterior e assim tornar-se o mesmo que aquele que era à luz dela.]]

A possibilidade de «se estar disposto» [[No διατίϑεσϑαι.]] desta e daquela maneira permite criar modos de comportamento relativamente às mais diversas situações completamente diferentes umas das outras. O nosso modo de estar, que é fundado numa disposição teórica, num ponto de vista «espectacular», desqualifica a disposição que se constituiria se as coisas nos tivessem verdadeiramente a nós no seu seio. A depressão (λύπη) que é «tida em vista» como o objecto de um espectáculo teatral que estamos a ver é completamente distorcida pelo predomínio da situação em que nós mesmos nos encontramos: no teatro, a salvo de tudo. O modo como nós, enquanto espectadores, nos encontramos, o modo como estamos dispostos, mesmo enquanto os espectadores mais interessados, é o predominante, e prevalece sobre toda outra qualquer afetação situacional.

É por isso que se produz um fenômeno absolutamente extraordinário. Ao escutarmos Homero ou qualquer outro poeta retratando e reproduzindo uma situação deprimente, nós sentimos prazer e abandonamo-nos [Rep., 605d] a tudo o que está a ser escutado ou visto. A dor e a aflição não deixam de ser identificadas como tais. E, no entanto, dão-nos prazer. Quer dizer, a situação a partir da qual «vemos» essas reproduções faz que elas nos deem prazer. O sofrimento dá prazer [[Uma situação semelhante àquela da qual a expressão alemã «eisernes Holz» procura dar conta.]].

Esta diferença não é apurada objectivamente, se assim quisermos dizer. Conseguimos compreender que uma coisa é ver um espectáculo [95] que representa uma determinada situação resultante de afetações que afligem outros [[Rep., 606b1 e 605b6. Cf. Jonathan Lear, «Inside and Outside The Republic», Phron., XXXVII/2, pp. 184-215, para uma análise da interiorização do sentido das situações das πράξεις (pp. 208-215).]], outra, completamente diferente daquela, é a própria situação quando ela acontece a cada um de nós no momento em que ela se dá [Rep., 605d7]. O modo como nos encontramos dispostos por ela, a nossa maneira de a sentir é completamente diferente de a estarmos a escutar [Rep., 605c10] ou a ter em vista [Rep., 606b1].

É a partir de um esforço de cálculo [[Rep., 605d7, 606b5, 606a3 e 605c1.]] que se consegue ver a diferença entre o que é acontecer-me a mim qualquer coisa que me afeta, dispondo-me segundo essa forma de afetação, e estar «de fora» a ver o que acontece a outrem. A diferença que se apura não é objectiva, na medida em que nos «reportamos» sempre a uma situação de sofrimento (λύπη) ou a algum dos seus mais diversos matizes. A depressão e o sofrimento são compreendidos e interpretados como tais. A diferença que se apura é entre aquilo que nos acontece a nós e aquilo que é visto como alienado de nós. Isto é, há uma diferença radical entre um pathos (πάθος) que se aloja e domicilia em nós [[Rep., 605d7 e 606a3.]] e um outro que nos transforme noutro, estranho e estrangeiro [Rep., 606b1]. A possibilidade de operar esta diferenciação anularia, portanto, a «distância» mimética entre nós e a situação que está a ser tematizada. Não no sentido em que faríamos que a situação que está a ser retratada passasse a acontecer-nos efectivamente a nós, mas no sentido em que conseguiríamos levar a cabo um acompanhamento tal que, pelo menos, não transformasse o «sofrimento alienado de nós» em «nosso prazer». Quer dizer, ao operar esta diferenciação no seio dos pathos (πάθη), estamos de algum modo a anular a mera passividade patológica e a constituir uma forma de ação ou de reacção que nos permite operar diferenciações no seio da estrutura de acontecimento prático, a procurar dar-lhes um sentido.

É a partir deste ponto de vista que se estabelece a diferença fundamental entre ver uma situação e estar sob a sua ação. A «adversidade» (συμφορά), o «luto» (πένθος), o «lamento» (ὀδυρμός), a «compaixão» (ἔλεος), a «vergonha» (αἰδώς), manifestam-se como matizes da forma fenoménica caracterizada pelo sofrimento (λύπη). Enquanto [96] fenômenos patológicos, afetam-nos de uma forma completamente ambígua, distanciados da verdade em que se dão, sem que os possamos desocultar ou pôr a descoberto na sua eficácia. Podem, por isso, ser distorcidos e pervertidos pela perspectiva que abrem sobre eles, oferecendo-se a interpretações contraditórias.