A doutrina da reminiscência, que pode ser sinteticamente expressa pelo princípio segundo o qual “conhecer é recordar”, é exposta por Platão no Mênon e no Fédon e é mencionada outra vez no Fedro. No Mênon é introduzida para solucionar o aparente paradoxo presente no ato de aprender. Como podemos aprender aquilo que ignoramos totalmente? E se não o [91] ignoramos, então será já sabido, razão pela qual aprender se torna supérfluo (80e). Nesse diálogo, Sócrates demonstra sua tese com um experimento prático. Um escravo, que nada sabe de matemática, consegue resolver corretamente um problema de geometria apenas respondendo às perguntas de Sócrates, o qual não lhe havia fornecido de antemão nenhum conteúdo que o ajudasse (82b-85b). Isso demonstra que o escravo colocou em prática conhecimentos de que já dispunha desde o seu nascimento (e aqui Platão conecta, como também fez no Fédon, a doutrina da reminiscência com a doutrina da metempsicose, ou melhor, da transmigração das almas de um corpo para outro).
Muito mais elaborada e filosoficamente interessante é a demonstração presente no Fédon (72e-77b). Dizemos que “recordar” é a experiência mediante a qual a noção de uma determinada coisa nos faz vir à mente a lembrança de uma outra diferente. Por exemplo, vendo um objeto pertencente a certa pessoa, lembra-mo-nos dela, mesmo que a mesma não esteja presente. Esse tipo de rememoração ocorre entre duas coisas diversas. Mas existe também um caso analogo que ocorre entre coisas similares. Por exemplo, se alguém observar uma pintura de Simias, logo sua memoria se reporta à imagem de Símias em carne e osso.
O mesmo gênero de relações pode ser aplicado à relação entre ideias e coisas. Dizemos, por exemplo, que o igual é alguma coisa, significando não a igualdade concreta de madeiras ou pedras, mas alguma coisa de diferente e de ulterior em relação a todas essas [92] igualdades, ou seja, o igual em si, e assim conhecemos o que é (74a-b). Esse igual nos vem à mente, a saber, “é recordado”, a partir das igualdades que vemos no mundo empírico (mais ou menos como o retrato de Símias relembra o Símias real).
Por outro lado, a experiência não pode ser a verdadeira fonte de onde aprendemos a noção do igual em si, porque os casos de igualdade que provamos através da experiência são todos deficitários em relação à igualdade perfeita, e nós percebemos essa falha (74d-e). Essa percepção é possível, porém, apenas se possuirmos antecipadamente a noção da igualdade em si, sem a qual não podemos dizer que os iguais concretos são defectivos. Isso significa que “antes de nascer e logo depois de nascido, já conhecíamos não só a igualdade e, por conseguinte, o maior e o menor, mas também todas as coisas desse gênero; porque não se trata de raciocinar só sobre o igual, mas também sobre o belo em si e o justo em si, o sagrado, em suma, como dizia, sobre todas as coisas às quais nós, interrogando e respondendo, damos o sigilo da expressão aquilo que é’” (75c-d).
Resulta necessário que no ato do nascimento o homem possua de algum modo as ideias. A experiência nos comprova que não se pode tratar de um inatismo perfeito, ou seja, de um saber já realizado desde o início, porque os homens nascem ignorantes e aprendem no decorrer do tempo. Mas pelo fato de o homem não poder nascer sob um estado de completa ignorância (até porque, se fosse assim, a aprendizagem seria inexplicável), [93] devemos pensar em uma forma intermediária entre saber e não saber, como no caso em que alguém teve um saber pleno, mas agora se esqueceu. O trauma do nascimento é a causa desse esquecimento que, porém, não anula totalmente os resquícios do saber, o qual, de certa forma, será rememorado a partir do contato com a experiência.
Eis a via intermédia que procurávamos. Não é de se espantar que os homens não consigam responder completamente à pergunta socrática, e que não se encontre nos escritos platónicos a definição de uma ideia. Os objetos aos quais esta pergunta se refere, de fato, têm uma natureza metafísica, ou seja, não estão atualmente disponíveis ao conhecimento da alma encarnada. O que não significa, todavia, que os homens não possuam de todo alguma noção. Em suas almas estão presentes as recordações esmaecidas de tudo o que viram antes de nascer. Isto explica porque eles conseguem entender do que se trata quando se alude a conceitos universais, mesmo não tendo tido uma experiência atual, e também porque são capazes de exprimir opiniões sensatas sobre o assunto (embora não possam conhecê-lo de modo exaustivo). A análise de outras passagens do Fédon nos permitirá confirmar esta conclusão.