Uma coisa é o que nos surge (γίγνεσθαι ήμῖν) e outra coisa ter em vista (ύεωρεῖν)

A estranheza da nossa vida está nisto mesmo, ou seja, ser possível que o que só «se aguenta» de uma forma violenta, como a exposição a situações adversas que nos acontecem (οἰκεῖαι συμφοραί), situações que nos fazem ter «fome de chorar» [Rep., 606a4], nos fazem lamentar amargamente, deprimem e trazem sofrimento, possam ser interpretadas, vistas à distância, como afetações alheias (ἀλλότρια πάθη), como fenômenos de prazer [[Esta «fome» de chorar representa o nosso desejo natural, quando nos encontramos nestas situações (Rep., 606a5). Os poetas identificam-no e «preenchem-no, produzindo agrado».]]. O pathos (πάθος) da distância faz-nos regozijar e exultar com fenômenos de depressão (λύπη). Uma e a mesma situação pode dar azo a uma diferença completa e radical, uma diferença que se estabelece quando se considera o modo como ela eclode e nos afeta e o modo como ela é vista com a distância «teórica». O modo como nos reportamos à situação tematizada é completa e radicalmente diferente quando a estamos a ter em vista à luz do pathos (πάθος) da distância e quando ela nos sucede, fazendo surtir o seu efeito sobre nós. Uma coisa é o que nos surge (γίγνεσθαι ήμῖν) e outra coisa ter em vista (ύεωρεῖν) essa mesma situação. Este modo de comportamento relativamente à situação humana (πρᾶξις) constitui a diferença entre uma afetação em nós domiciliada (οἰκεῖον πάθος) e uma afetação que nos é alheia (ἀλλότριον πάθος). As afetações alheias (ἀλλότριον πάθος) não significa apenas o que acontece a uma outra pessoa. A «alteridade», a «alienação», o «alheamento», dão expressão à distância patológica relativamente a uma qualquer situação humana em que os outros ou nós mesmos nos encontremos. O alheamento patológico pode, por conseguinte, constituir-se também relativamente a nós mesmos. Nada há de tão aflito que com o tempo não nos possa surgir à luz de uma profunda mas suave melancolia, de uma doce tristeza, quando na verdade o que aconteceu trouxera até nós a mais profunda das depressões, o mais agudo sofrimento. Tudo o que no momento do seu acontecer [98] só dificilmente é suportado [[É precisamente um esforço de desconstrução desta natureza o que se joga na determinação da adikía no Górgias: estar num ponto de vista em que se consiga decidir se de fato o que temos em vista é bom, surge à luz de um mero prazer, ou se de fato, uma vez realizado, não corresponde senão a uma tristeza, a um lamento.]] surge-nos à distância com um outro vigor patológico que destrói a verdade do que sucedeu.

A fabricação imitadora (ποιητική μίμησις) «cultiva e irriga estas formas patológicas quando as deve secar; investe os afetos como nossos dominadores, quando somos nós que os devemos dominar, para que nos tornemos melhores e mais felizes em vez de piores e mais miseráveis»[Rep., 606d]. A educação nas situações humanas [Rep., 606e3] não pode sem mais corresponder a uma redução do prazer ao melhor de tudo nem do sofrimento ao pior de tudo. Esta redução só é possível a partir de uma alienação absoluta relativamente a esses acontecimentos [Rep., 607a5]. Uma alienação e um distanciamento que temos de destruir.