Excertos de Umberto Eco, “Arte e Beleza na Estética Medieval”
Marcílio Ficino, que traduzirá e comentará tanto os Diálogos de Platão como as Enéadas de Plotino, empreende por ordem de Cosimo de Medici a tradução do Corpus, que ele traduzirá de forma incompleta com o título de Pimander. Ficino – e com ele todo o ambiente humanístico – considera o Corpus documento de uma antiga sabedoria pré-egípcia, talvez obra do próprio Moisés. Mas, diferentemente do relato bíblico, a gênese do mundo, da qual se fala no primeiro texto do Corpus, sublinha o fato de que o homem não só é criação de Deus, mas ele mesmo é divino. Sua queda não se deve ao pecado, mas a sua capacidade de inclinar-se para a Natureza, movido pelo amor por ela.
O Corpus hermeticum, sendo uma compilação, contém ideias que frequentemente se contradizem de livro para livro. De resto, toda a tradição à qual o humanismo se remete tem caráter sincrético; os próprios humanistas, a começar por Ficino e Pico della Mirandola, pretendem demonstrar a fundamental concordância entre as sabedorias tradicionais que, a despeito das aparentes contradições, reafirmariam as verdades fundamentais do cristianismo. Um gosto historiográfico por um depósito de verdades contraditórias funde-se com os fermentos da metafísica da contradição já expressa por Nicolau de Cusa. A fusão do neoplatonismo, cabalismo, hermetismo leva os estudiosos da nova era a ver na contradição só o infinito desdobramento da sabedoria divina, da própria ação de Deus no cosmo.
O neoplatonismo humanístico é, em relação ao medieval, um neoplatonismo forte, que não foi revisto pela exigência de salvaguardar a racionalidade e a não-contraditoriedade do princípio divino. Reconectando-se ao neoplatonismo das origens, de Plotino e Proclo, recolocam-se uma metafísica e uma ontologia pelas quais, no topo da escala dos seres, está um Uno inacessível e obscuro, que, não sendo suscetível a nenhuma determinação, contém todas elas e é, portanto, o lugar, fecundíssimo, da própria contradição. Mas como este Uno não é transcendente ao mundo – identifica-se com ele em um movimento de criação contínua – todo elemento do mobilamento mundano participa desta riqueza de sua origem. Na própria vida da realidade criada realiza-se, continuamente, e sob aspectos sempre novos, a coincidência dos opostos.
Marsílio Ficino coloca no centro de seu platonismo a soldadura de religião e filosofia. Não era um tema novo. Novo era o caminho através do qual procurava-se realizá-la: uma sabedoria antiga em que esta unidade não se rompera. É compreensível por que esta atitude induz a uma releitura de todas as revelações, de todos os tempos e de todos os países, para encontrar nelas o núcleo central de uma religião natural, de origem antiquíssima. Daí o entusiasmo pela redescoberta dos códigos gregos, que envolve os doutos e seus mecenas. O pensamento platônico apresenta-se como lugar teórico em que essa soldadura havia sido verificada com maior evidência, mas do platonismo vieram à luz, nesse fervor de redescoberta, a doutrina sobre o amor e as sugestões que ela podia dar para uma redefinição do papel de homem no mundo. O objetivo de uma religião filosófica é, para Ficino, a renovação do homem. A redenção é uma renovação pela qual, através do homem, a natureza criada foi restituída a Deus. A alma humana é a verdadeira conjunção do mundo, porque, de um lado, volta-se para o divino e, de outro, insere-se no corpo e domina a natureza. O homem participa da providência, que é a ordem que governa os espíritos, do destino, que governa os seres inanimados, e da natureza, que governa os corpos. Mas, mesmo participando destas três ordens, o homem não é determinado por nenhuma. Participa delas ativamente.
A alma cumpre sua função mediadora através do amor: Deus ama o mundo e o cria, o homem ama a Deus. O homem é a unidade viva do ser através do vínculo de amor que, nas duas direções, o liga a Deus. O homem se diviniza no desenvolvimento da própria racionalidade, em um processo de purificação e aperfeiçoamento infinito.
Em síntese, podemos dizer que o platonismo Ficiniano apoia-se numa ideia de amor como consciência de uma falta e procura de um tesouro escondido, de uma revelação intelectual que concerne a uma verdade misteriosa, envolta por um caráter sagrado, pelo qual o filósofo assume uma função sacerdotal.
Vejamos imediatamente como estas posições impõem a Ficino uma visão estética diferente da escolástica. No trecho que segue (de Sopra lo amore, um comentário ao Simpósio platônico, vv. 2-4), Ficino retoma todos os temas clássicos da estética medieval, mas para contestá-los.
Alguns são de opinião que a Beleza é uma certa posição de todos os membros, ou, na verdade, comensuração e proporção com suavidade de cores: opinião que não compartilhamos. Pelo fato de que, estando esta disposição das partes não só nas coisas compostas, nenhuma coisa simples seria bela. Mas nós vemos também as cores, os lumes, uma voz, um fulgor de ouro, a alvura da prata, a Ciência, a Alma, a Mente, e Deus, coisas que muito nos deleitam, como coisas muito belas. Acrescente-se que a proporção inclui todos os membros do corpo composto juntos, de modo que ela não está em nenhum dos membros de per si, mas em todos juntos. Portanto, qualquer dos membros em si não será belo. Mas a proporção de todo o composto nasce também das partes: assim, disto resulta um absurdo, e este é que as coisas que não são por sua natureza formosas dariam à luz a Beleza.
(…) A mesma razão nos ensina que não pensemos ser a Beleza suavidade de cores: porque muitas vezes a cor em um velho é mais clara, e em um jovem é maior graça. E nos da mesma idade às vezes acontece que aquele que supera o outro em cor é superado pelo outro em graça e beleza. Que ninguém ouse afirmar ser a formosura uma mistura de figura e cor: porque assim as ciências e as vozes às quais faltam cor e figura, e ainda as cores e os lumes, que não têm determinada figura, não seriam dignos de Amor.
(…) A divina Potência supereminente, no Universo, nos Anjos e nas almas por ela criados clementemente infunde, assim como em seus filhos, o seu raio, do qual é virtude fecunda qualquer coisa criar. Neles – como os mais próximos a Deus – este raio divino pinta a ordem de todo o Mundo, muito mais expressamente que na matéria mundana: pelo que esta pintura do Mundo, a qual nós vemos toda, nos Anjos e nas Almas é mais expressa que diante dos olhos. Neles está a figura de qualquer esfera, do Sol, Lua e Estrelas, dos Elementos, pedras, árvores e animais. Estas pinturas, nos Anjos, chamam-se exemplares e ideias; nas Almas, razões e notícias; na matéria do Mundo, imagens e formas. Estas pinturas são claras no Mundo; mais claras na Alma e são claríssimas no Anjo. Portanto, um mesmo rosto de Deus reluz em três espelhos dispostos por ordem, no Anjo, na Alma e no corpo mundano; no primeiro, como mais próximo, de modo claríssimo; no segundo, como mais remoto, menos claro; no terceiro, remotíssimo, muito escuro.
(…) E nós não duvidamos ser esta beleza incorpórea: porque no Anjo e na Alma é evidente a incorporeidade; e nos corpos mostramos acima que ela também é incorpórea, e daí, presentemente, podemos entender que o olho não vê senão o lume de Sol; porque as figuras e as cores dos corpos não se veem nunca, a não ser por lumes ilustrados; e eles não chegam ao olho com a sua matéria; e parece necessário que eles devam estar nos olhos, para que pelos olhos sejam vistos. Portanto, um lume de sol, pintado de cores e figuras de todos os corpos em que bate, apresenta-se aos olhos: os olhos, com a ajuda de um certo raio natural seu, apreendem o lume do sol assim pintado; e como o apreenderam, veem esse lume, e todas as pinturas que estão nele. Eis por que toda esta ordem do Mundo que se vê apreende-se com os olhos: não do modo que ele está na matéria dos corpos: mas do modo que ele está na luz; separado já da matéria, é necessariamente sem corpo. E isto está claro aos olhos; esse lume não pode ser corpo; num instante, de Oriente a Ocidente, quase todo o mundo preenche: e penetra por toda parte, no corpo do Ar e da Água, sem ofensa alguma. (Ed. Rensi pp. 64-69.)