Ferreira da Silva: O Andróptero

FERREIRA DA SILVA, Vicente. Dialética das Consciências. São Paulo: É Realizações, 2009, p. 25-30.

Qual seria nossa surpresa se encontrássemos, ao abrir uma obra de filosofia, um capítulo dedicado não às formas puras, mas às formas ctônicas da Geografia! É certo que não acharíamos, de golpe, senso algum nessa aproximação, pois que concordâncias estabelecer entre as descrições objetivas e isentas da Geografia e o vulcanismo da alma, entre os cenários milenares dos rios e montanhas e o desenvolvimento rápido e trêmulo de nossa vida? Essas explorações parecem chocar-se e contradizer-se como direções verticais. Entretanto, tal “incongruência” encontramo-la num dos diálogos do divino Platão. No Fédon, depois de afirmar que essa terra não corresponde à imagem que dela fazem os que costumam redatar descrições de sua superfície, Platão nos diz ser a terra incomensuravelmente grande, possuindo uma infinidade de lugares maravilhosos que desconhecemos por habitarmos entre “Farsis e as colunas e Hércules”. Fechados nesse exíguo círculo, entre vales e escarpas confinantes, não temos muitas vezes sequer o pressentimento das paragens divinas que nos envolvem, dessa “terra pura” que domina a nossa terra. Tendo fixado nossa residência nesse solo pedregoso e estéril, aqui vivemos disseminados pelas praias e costas, como “formigas e rãs em redor de um pântano.” Este provincialismo geográfico desastroso e fatal, que se nos adere, termina por nos cegar, e deixamos então de perceber que a “terra que pisamos, estas pedras e todos os lugares que habitamos estão inteiramente corrompidos e arruinados como aquilo que jaz no mar o está, pela acritude dos sais.” Em toda parte, as infiltrações arenosas e salobras sustam o crescimento de toda forma bela e plena, “assim como no mar nada cresce de perfeito e de valioso.” Não conhecendo outra perfeição além da paisagem dessa região inferior, imaginamos viver em opulência entre as folhagens enfermas que nos cercam. Por que então não procurar algures o que nos falta aqui? Por que, como os flagelados das inclemências, não emigrar para outros céus? E aqui essa geografia transfigurada de Platão se desdobra em toda a sua riqueza simbólica. Se vivemos tolhidos em nosso Liliput é porque, para onde quer que nos voltemos, a terra se cava em fundos abismos ou ergue montanhas pétreas e intransponíveis, em sinclinais e anticlinais que transformam sua superfície em tortuoso caminho. A sombra desses descomunais limites se esbate, violenta, sobre as rugosidades e depressões em que habitamos. A topografia acidentada e sinuosa destas regiões, esse silo atormentado e revolto é que confere aos nossos dias o caráter angustiante e limitado e todo o ressaibo de penúria e carência. Há sempre um mais que anuncia nesse menos, um além que nos envolve e nos escapa, reverberando no alto dos cimos infinitos. A ilusão é, pois, a nossa arma contra essas opressões abusivas e constantes; assim é que “sumidos nestas cavernas sem darmos por isso, acreditamos habitar no alto da terra como alguém que, constituindo sua morada nas profundidades do Oceano, imaginasse habitar acima do mar, e vendo, através da água, o sol e outros astros, tomasse o mar pelo céu”. Escapamos ao nosso cativeiro pelo expediente da má-fé e da falsificação, apagando em nossa consciência todos os sintomas da sujeição e do abatimento do nosso estado e compondo um vigor de aparências. Sentimo-nos senhores das alturas, quando em verdade vivemos como “formigas e rãs em redor de um pântano.”

No diálogo citado, uma aula de topografia se transmuta numa meditação sobre as coordenadas da existência, numa experiência e sondagem da finitude humana. A quem acusa Platão explicitamente por esse enclausuramento de nossas possibilidades? Não, como era de se esperar, à asperidade do nosso habitat, mas sim ao nosso peso e à nossa debilidade que impedem nossa ascensão às alturas. Somos nós que aderimos à terra por uma propensão ou gravidade próprias, por um geotropismo que a destaca em toda a sua substantividade. Essas luxuriosas formações “geológicas” que constituem ao mesmo tempo o anfiteatro e a cela do nosso existir seriam o reflexo de uma inflexão ou inércia internas, de uma projeção da nossa impotência. Por não possuirmos asas, existe uma terra árdua onde devemos vicejar e uma coisa é o contragolpe da outra. No Fedro, Platão já nos havia dito que, quando a alma perde suas asas, roda pelos espaços infinitos até aderir a alguma coisa sólida, fixando aí sua morada. Essa “coisa sólida” é constituída pelo sistema de nossos limites, de tudo quanto é externo, de todo o domínio da materialidade. A nossa existência, em lugar de se erguer ágil e leve como um ser alado para uma residência superior, precipita-se na materialidade e “se extravia, se turva, e, ao vacilar, é tomada de vertigem, como se estivesse embriagada”. Portanto ao delírio alado e transcendente, ao impulso aerostático de que se fala no Fedro, contrapõe-se a embriaguez sensorial e finitizante, esse destino de tudo quanto cai e que também se afirma em nossa alma com não menos força. Enquanto esse último impulso nos reveste dum corpo terrestre, o primeiro afã aponta para a separação de todo o corpóreo, de tudo o que impede a ascensão divina do andróptero. “A virtude das asas consiste em levar o que é pesado para as regiões superiores.”

Encontramos aqui uma verdadeira doutrina da liberdade e da libertação para a alma oprimida do homem. É a doutrina das Ideias que desempenha essa função desopressiva e arejante, comovendo as muralhas da finitude e dilatando o espaço de nosso exercício espiritual. Essas Ideias, historicamente tão famosas, não devem ser compreendidas como noções abstraídas das realidades sensíveis, da maneira pela qual entendemos comumente as nossas noções e conceitos, pois dessa forma não seriam “originais”, mas sim “cópias”; seriam realidades mais singelas, por esquemáticas, e não mais ricas que as coisas sensíveis como o são as “Ideias” platônicas. O conceito é sempre mais deficiente e pobre do que a coisa que conceitua, pois reproduz uma forma sensível, sendo portanto uma simples cópia ou imitação, enquanto as Ideias não são naturezas derivadas, mas sim Ser original, matrizes absolutas. A Ideia é justamente o contrário de um conceito, que está sempre aquém do sensível, tendo virtudes e propriedades completamente distintas. Enquanto o conceito nos encerra no determinado e no finito, pondo-nos em relação com um dado insuperável, as Ideias nos lançam num processo infinito de perfeição e de plenitude, fazendo-nos ultrapassar todo o imediato. A presença das Ideias é assinalada pela irrupção da possibilidade. Como diz Füller: “No sentido mais profundo da palavra, todas as Formas continuam a ser princípios morais e a revestir o halo socrático. As Ideias platônicas são ideais e sendo ideais são objetos de adoração. Nada têm de uma produção friamente científica epost mortem da natureza e do conteúdo da beleza, da santidade e da verdade. Não são um mapa, mas sim um panorama idealizado do universo, pintado com todas as cores dos desejos da alma.”

As Ideias se comportam como uma realidade completa em relação à realidade incompleta do mundo, como algo expressado em relação ao infuso e embrionário, como o infinito em relação ao finito. Exercem, portanto, um papel distensivo e libertador, pois nos facultam a evasão da pura constatação fática e do confinamento dos sentidos e dos conceitos. Apesar de realizadas, imóveis e estáticas, são o princípio de todo o movimento no mundo sensível, estando esse em constante radiação para esses paradigmas insuperáveis do Ser. É essa tensão, essa marcha rumo às constelações infinitas do mundo eidético, esse Eros cosmogônico, que mantém o universo em existência.

Salvando-nos do extravio dos dados sensíveis, as Ideias nos elevam a um outro domínio já dado e completo. Se o pensamento imediato nos paralisava pela sua insuficiência e incompletude, o pensamento eidético inflige também ao nosso ser um duro sacrifício: o da entrega a uma perfeição que não solicita o nosso consentimento para a sua constituição, exigindo a genuflexão de nossa vontade. O “ser-para-si” das Ideias desdenha qualquer adição do nosso esforço criador e em sua magnificência não necessita de nada ulterior para a sua existência e plenitude. Quando entramos em cena, o drama do ser já se cumpriu, pois está realizado desde todo o sempre e o nosso único papel seria o de reconhecer, ou não, a legitimidade de sua soberania. O real é uma declaração taxativa, um verbo eterno, do qual o nosso verbo transitório só poderia ser um eco ocioso e inessencial. Fora de sua complexão íntima, tudo é mimese, cópia, mera reprodução. Nessa linha de considerações, o processo criador da história é inteiramente estranho e desconhecido, e a liberdade conferida de início ao homem lhe é sorrateiramente sonegada. A liberdade colide assim com uma nova necessidade, tão imperiosa como a anterior; se a primeira nos alienava, atando-nos à multiplicidade, essa nos põe sob a tutela inexorável de um fatum legal. 0 real se nos apresenta, dessa maneira, como uma pressuposto e não como uma posição de Ser, como uma instância a ser reconhecida e não como autoposição de sua realidade, como pensamento pensado e não como pensamento pensante. Dessa concepção metafísica derivam as dificuldades que enleiam Platão, quando esse se defronta na República com o problema de explicar por que devem voltar a esse mundo, para desempenhar o seu papel de mentores e governantes, aqueles que fixaram sua morada no templo das Ideias. Compreende-se, pois, perfeitamente a pergunta de Glaucon a Sócrates: “Por que condená-los a uma vida miserável, se eles podem desfrutar de uma vida mais feliz?”. Se a felicidade e o objetivo da vida estão além da história, se o tempo e o curso das coisas humanas não constituem um fator substancial da realidade, por que exigir de quem se elevou a uma ordem superior de existência que se ocupe e se responsabilize pela gestão das sombras? Por que condenar novamente ao cativeiro do solo uma alma que possui asas e que deseja voar? Nesse ponto a argumentação da República não é nada convincente e não pode sê-lo dentro das premissas do platonismo. Toynbee, em seu livro Civilization on trial, classifica o platonismo entre aquelas concepções filosóficas que destituem a história de todo valor próprio, colocando toda tarefa da alma além do mundo fenomênico: On this view, this world is wholly meaningless and evil. The task of the soul in this world is to endure it, to detach itself from it, to get out of it.

Há diversos planos e residências para o espírito, diversas formas de ser que ele pode revestir, mas todos esses invólucros ontológicos se impõem à sua consideração e não fluem de seu poder formativo interno. A alma, nessa peregrinação pelo mundo, apesar de sempre surpresa e arrebatada, nunca sentiria em si o poderoso apelo de suas faculdades de plasmação e livre criação.