A psyche em Platão

14. A dívida de Platão à opinião órfico-pitagórica da alma é nitidamente acentuada nos primeiros diálogos. No Cármides 156d-157a estão presentes todos os motivos tradicionais deste «antigo relato» (palaios logos: Fédon 70c; ver Ménon 81a, Ep. VII, 335a): a psyche é uma unidade, imortal (athanathos), sujeita a um renascimento cíclico num corpo que é a fonte de todos os seus males. O fim da vida, e a definição de philosophia, é uma purificação (katharsis) que é uma preparação para a morte e o retorno da alma ao seu habitat natural. Associada a este complexo de ideias está a teoria da reminiscência (anamnesis; conforme uma autoridade posterior in Diógenes Laércio VIII, 4 Pitágoras lembrou as suas incarnações prévias; para Empédocles, ver ibid. VIII, 77) e é esta que leva Platão a considerações mais originais. No Fédon, a anamnesis resvala de repente para o nível da episteme e aquilo que é recordado não são os pormenores de uma outra vida mas um conhecimento das Formas (eide). A psyche é a faculdade na qual conhecemos os eide (65a-67b) e isto porque a alma é mais afim dos eide (78b-79b), como eles imortal, imaterial e invisível.

15. Gradualmente os aspectos mais radicais da diferença entre o corpo e a alma são modificados em Platão. Em muitos aspectos isto representa um regresso às categorias tradicionais pelo fato de reconhecer que várias funções somáticas pertencem também à alma, que no Fédon se esforça por operar só na esfera noética e separada dos sentidos. Esta acomodação é realizada pela tripartição da alma (República IV, 435e-444e). A psyche, como a própria politeia, está dividida em três partes: a racional (logistikon), a «dotada de espírito» (thymoeides), e a apetitiva (epithymetikon), com virtudes e pathe adequadas a cada uma. A divisão aparece novamente na República IX, 580d-581a, no Fedro 2463-b, 253c-255b, e de novo no Timeu 69d-72d onde se atribuem às partes os seus lugares corpóreos apropriados, ligadas pela espinal medula (73b-d; a ligação do cérebro (enkephalos) com a coluna vertebral era bem conhecida, embora negada por Aristóteles, De part. anim. II, 652a; ver também kardia).

16. Como as funções da alma são alargadas a partir da República, a parte superior ou logistikon começa a revestir-se das características da psyche unitária do Fédon. É divina, criada pelo demiourgos (Timeu 41c-d), alojada na cabeça (ibid. 44d; ver kardia), teve uma visão pré-natal dos eide (Fedro 247b-248b, Timeu 41e-42a), e sujeita à palingenesia cíclica (Fedro 248c-249d, Timeu 42b-d). É, além disso, imortal, em contraste com as duas outras partes da alma que são mortais e criadas por deuses menores (Timeu 69c-d; ver República X, 611b-612a, Político 309a-c).

17. Uma das dificuldades decorrentes do tratamento que Platão faz da alma é o fato de ele ter postulado claramente a tripartição da alma em bases éticas, enquanto a alma unitiva do Fédon é sugerida por considerações epistemológicas. Dado que a psyche do Fédon é evidentemente o logistikon dos diálogos posteriores, podemos integrar as suas funções e vê-la como a arche cognitiva de uma dianoia não sensorial (Fédon 79a, Soph. 248a) e legislador ético das duas partes inferiores da alma (República IV, 441e; Fedro 253c-254e). Mas é menos claro quais são os poderes cognitivos das partes inferiores da alma, e se os há. Que a sensação (aisthesis) envolve a alma bem como o corpo é mencionado mais de uma vez; o prazer, dizem-nos, estende-se do corpo à alma (República IX, 584c) e no Phil. 33d-34a, este pathos ético é alargado para incluir também o pathos cognitivo da sensação (confrontar o passo paralelo no Timeu 64b). Mas devemos resistir à tentação de localizar a sensação no thymoeides, um tanto à maneira de uma psyche aisthetike aristotélica. O Timeu localiza o logistikon na cabeça e ao mesmo tempo faz do cérebro (enkephalos) a sede da sensação (44d, 73b). O logistikon, podia supor-se, é a única parte cognitiva da psyche. A sua função normal e natural é a dianoia ou o logismos, mas devido à sua ligação com o corpo estranho, à nascença, é invadida por vários pathe desse corpo e quando estes alcançam a alma dá-se a sensação (Timeu 42e-44a; para mecanismo destes pathe corpóreos ver aisthesis, 15-17). A função do thymoeides, localizado no peito, é, nesta perspectiva, receber comunicações do logistikon e atuar sobre elas (ibid. 69d-70b). O epithymetikon, localizado na cavidade abdominal, não recebe nenhuma mensagem do logistikon, mas a sua procura impetuosa de prazeres físicos é ocasionalmente temperada pela presença do fígado, que é a sede dos sonhos (oneiros) e a base da adivinhação (mantike; para um funda mento posterior da adivinhação ver sympatheia 8).

18. Então dificilmente se pode chamar ao logistikon a arche da sensação como os pré-socráticos a entendiam. É antes uma encruzilhada entre um «outro em si» xamanístico pitagórico e a faculdade do «verdadeiro conhecimento» no sentido parmenidiano. É capaz de episteme por causa da sua semelhança com as coisas conhecidas, os eide (Fédon 79b; in Sofista 248e-249b, com as suas perspectivas alteradas, recebe um quinhão do «realmente real») e é capaz de sensação faute de mieux.

19. No Timeu 43a-d e nas Leis X, 896e-897b Platão faz uma distinção entre os movimentos primários próprios da alma e os movimentos secundários que se originam no corpo e entram na alma, e no Filebo 33d descreve a sensação como uma espécie de agitação (seismon) que é peculiar ao corpo e à alma e ao mesmo tempo comum a ambos. Assim, Platão é levado a abordar a psyche de um modo diferente mais afim do outro motivo pré-socrático da kinesis. Uma das maiores provas de Platão para a imortalidade da alma, i. e., o logistikon, é o fato de ela estar sempre em movimento (aeikineton) e daí ter de ser auto-movida (autokineton), doutro modo não haveria genesis (Fedro 245c-e). O argumento não é inteiramente novo; foi usado por Alcméon que, contudo, não argumenta a partir do auto-movimento mas sim a partir do fato da alma ser aiekineton (Aristóteles, De anima I, 405a). O argumento de Platão, por outro lado, deriva do auto-movimento do noûs que é parte da realidade (Sofista 249a-b) e está relacionado com o eidos da kinesis (ibid. 254d onde é um dos megista gene; ver eidos 13 e kinesis 6). Este não é, pois, um dos muitos tipos de causalidade secundária pormenorizada nas Leis X, 893b-894c, mas o movimento primário com que termina o catálogo, o movimento «real» que se move e que é a arche da kinesis (Leis X, 895b; comparar Fedro 245d). Ele está preparado para avançar ainda mais. O auto-movimento é a essência (ousia) e a definição da alma (Fedro 245s). [Termos Filosóficos Gregos, F. E. Peters]