O primeiro parágrafo do Tratado-53 tem algo de confuso: se ele anuncia o plano do tratado, é sob a forma, enganosa, de uma investigação sobre as faculdades [dynamis]; Plotino passa em revista, segundo uma ordem que se reconhece hierárquica, uma multiplicidade de estados e de operações para perguntar qual é o sujeito [hypokeimenon]. Ora esta investigação não chaga à determinação de um único sujeito de atribuição. A multiplicidade [plethos] primeira não é portanto reduzida senão a distribuída entre três sujeitos possíveis: a alma [psyche], a alma usando do corpo [soma], ou “uma terceira coisa composta da alma e do corpo”. É sobre estes, em verdade, e sobre a validade das fórmulas que os designam, que a investigação vai tomar lugar: será preciso determinar quais, entre eles, podem contar como substâncias, e de que natureza.
É por uma litania das paixões [pathos] que se abre o tratado. Há uma enumeração escolar, mas também retórica: as paixões são elencadas por pares de opostos, prazeres [hedone] e aflições [lype], temores [phobos] e audácias [tharre], desejos [epithymia] e aversões [apostrophe], onde todas vêm a se resumir em um termo único: o sofrimento [algein tinos], como se este fosse a chave. Faz lembrar o Timeu, e a descrição, pelo demiurgo [demiourgos], das modificações suscitadas na alma por sua “implantação” no corpo; mais adiante, no entanto, no mesmo texto, as paixões serão apresentadas como componentes da “alma mortal” (69d). Tal lista se encontra também no Filebo, onde “cólera, temor, remorso, luto, amor, ciúme, inveja e outras afecções deste gênero” são designadas como “dores da alma só” (47e). Aristóteles, enfim, quando evoca estas paixões, delas fala como atributos comuns à alma e ao corpo (De Anima, I,1, 403a7). A questão do sujeito das paixões parece então ditada pelas incertezas e as divergências da tradição. E é, de novo, através de termos de empréstimo que Plotino vai formulá-la; ele distingue com efeito três sujeitos possíveis: “a alma”, “a alma usando do corpo”, ou “uma terceira coisa composta da alma e do corpo”, esta última podendo ser “a mistura” [krasis] ela mesma ou uma entidade nova dela resultando. Esta tripartição lembra o Primeiro-Alcibiades que, para a questão “o que é o homem [anthropos]?” propunha três respostas: “a alma, o corpo, o o todo formado da alma e do corpo” (130a-b). Mas mesmo fazendo lhe fazendo eco, Plotino põe estas três hipóteses a serviço de uma questão que não é aquela de Platão. Se coloca assim, de pronto, o problema da relação do Tratado-53 ao Primeiro-Alcibiades: viu-se que para Porfírio, o editor das Enéadas, assim como para a tradição neoplatônica, os dois textos exerciam a mesma função, propedêutica, iniciática, e isto enquanto eram todos os dois regidos pelo preceito délfico do “Conhece-te a ti mesmo” [gnothi seauton]. E, de fato, o Alcibíades transparece imediatamente sob as primeiras linhas de nosso tratado: porque então Plotino transpõe a questão diretora? Como compreender que para a questão da essência do homem ele a substitua por aquela do sujeito das paixões?