Mircea Eliade — História das Crenças e das Ideias Religiosas
No século VI, o pensamento religioso e filosófico era dominado pelo problema do Um e do Múltiplo. Os espíritos religiosos da época indagavam de si para si: “Qual é a relação entre cada indivíduo e a divindade à qual se sente aparentado? Como podemos realizar a unidade potencial implícita tanto no homem como no deus?.”1 Durante os orgia dionisíacos, efetuava-se certa união entre o divino e o humano, mas era temporária e obtida pelo aviltamento da consciência. Os “órficos”, embora aceitassem a lição báquica — vale dizer, a participação do homem no divino —, dela tiraram a conclusão lógica: a imortalidade, e, por conseguinte, a divindade, da alma. Ao fazerem isso, substituíram os orgia pela katharsis, técnica de purificação ensinada por Apolo.
O citaredo tornou-se símbolo e patrono de todo um movimento, ao mesmo tempo “iniciatório” e “popular”, conhecido pelo nome de orfismo. O que basta para distinguir esse movimento religioso é, em primeiro lugar, a importância concedida aos textos escritos, aos “livros”. Platão refere-se a uma quantidade de livros atribuídos a Orfeu e a Museu (que passava por seu filho ou discípulo), cujo tema eram as purificações e a vida depois da morte. Cita ainda certos hexâmetros, de natureza teogônica, como sendo “de Orfeu”. Eurípides, da mesma forma, fala das “escrituras” órficas, e Aristóteles, que não acreditava na historicidade de Orfeu, estava a par das teorias da alma contidas “nos pretensos versos órficos”2. Parece plausível que Platão tenha conhecido alguns desses textos (podiam ser adquiridos junto aos livreiros).
Uma segunda característica é a variedade considerável daqueles que se diziam “órficos”. Ao lado dos autores de teogonias, ou dos ascetas e visionários, encontravam-se aqueles a quem, mais tarde, na época clássica, Teofrasto chamava de Orpheotelestaí (“iniciadores órficos”). Isso para não falarmos de alguns vulgares taumaturgos purificadores e adivinhos, que Platão descreve num passo célebre3. O fenômeno é bastante conhecido na história das religiões: todo movimento ascético, gnóstico e soteriológico provoca inúmeras pseudomorfoses e iniciações às vezes pueris. Basta-nos lembrar os falsos ascetas que pululam na índia desde os tempos dos Upanixades, ou os imitadores grotescos de iogues e tântricos. Formam legião os pastiches, sobretudo quando se insiste no caráter revelado e iniciático de uma gnose soteriológica. Pensemos, por exemplo, nas incontáveis “iniciações” e “sociedades secretas” que surgiram na Europa ocidental depois do aparecimento da franco-maçonaria ou que tinham relação com o “mistério dos Rosa-Cruzes”. Seria ingênuo, por conseguinte, deixarmo-nos impressionar pelos orpheotelestaí e pelos taumaturgos, e duvidar da realidade das ideias e dos rituais órficos. De uma parte, extáticos, adivinhos e curandeiros desse jaez são atestados desde os tempos mais recuados: constituem uma das características das “religiões populares”. De outra parte, o fato de que, desde o século VI, muitos desses taumaturgos, adivinhos e purificadores tenham invocado o nome de Orfeu prova a existência de certas gnoses e técnicas soteriológicas que pareciam superiores, mais eficazes e mais prestigiosas, e que havia um esforço no sentido de imitá-las ou, pelo menos, de apropriar-se do brilho ligado ao nome da fabulosa personagem.
Algumas alusões de Platão permitem-nos entrever o contexto da concepção órfica da imortalidade. Em punição de um crime primordial, a alma é encerrada no corpo (soma) tal como no túmulo (sêma) . Por conseguinte, a existência encarnada assemelha-se antes a uma morte, e a morte constitui o começo da verdadeira vida. Essa “verdadeira vida”, no entanto, não é obtida automaticamente; a alma é julgada de acordo com as suas faltas ou méritos e, depois de certo tempo, volta a encarnar-se. Como na índia após os Upanixades, trata-se da crença na indestrutibilidade da alma, condenada a transmigrar até a sua libertação final. Empédocles, que seguia a “vida órfica”, já cuidava que a alma se achava prisioneira no corpo, exilada longe dos Bem-Aventurados, revestida da “estranha túnica da carne” (fr. B. 115 e 126). Para Empédocles, ainda, a imortalidade implicava a metempsicose: tratava-se, aliás, da justificativa do seu vegetalismo (o animal que abatemos pode trazer dentro de si a alma de um dos nossos parentes próximos).
As práticas vegetarianas tinham, contudo, uma justificativa religiosa mais complexa e mais profunda. Ao recusar o alimento de carne, os órficos (e os pitagóricos) abstinham-se dos sacrifícios cruentos, obrigatórios no culto oficial. Tal recusa traduzia, sem dúvida, a decisão de separar-se da cidade e, em última análise, de “renunciar ao mundo”; mas ela proclamava, sobretudo, a rejeição, na sua totalidade, do sistema religioso grego, sistema esse fundado pelo primeiro sacrifício instituído por Prometeu (§ 86). Reservando o consumo da carne para os humanos, e destinando aos deuses a oferenda dos ossos, Prometeu provocou a cólera de Zeus; desencadeou, ademais, o processo que pôs termo à época “paradisíaca”, quando os homens viviam em comunhão com os deuses . O retorno às práticas vegetarianas indicava, ao mesmo tempo, a decisão de expiar a falta ancestral e a esperança de recuperar, ao menos parcialmente, a beatitude primitiva.
Aquilo que se denominava a “vida órfica” (Leis, VI, 782 c) comportava purificação, ascetismo e muitas regras específicas; a salvação, no entanto, era obtida principalmente através de uma “iniciação”, isto é, de revelações de ordem cósmica e teosófica. Ao colacionarmos os poucos testemunhos e alusões dos autores antigos (Ésquilo, Empédocles, Píndaro, Platão, Aristófanes etc), assim como alguns documentos posteriores, chegamos a reconstituir as linhas gerais do que se poderia chamar, na falta de melhor termo, a “doutrina órfica”. Distingue-se uma teogonia prolongada numa cosmogonia, e uma antropologia bastante singular. É essencialmente o mito antropogônico que funda a escatologia órfica, contrastando ao mesmo tempo com a escatologia de Homero e a de Elêusis.
A teogonia dita das “Rapsódias” só conserva certos pormenores da genealogia transmitida por Hesíodo. O Tempo (Khrónos) produz no Aithêr o ovo primordial de onde sai o primeiro dos deuses, Eros, também chamado Phánês. É Eros, princípio da geração, que cria os outros deuses e o mundo. Zeus, porém, engole Phánês e toda a criação, e produz um novo mundo. O tema mítico da absorção de uma divindade por Zeus era bem conhecido. Conta Hesíodo que o Olímpico havia engolido a sua esposa Métis antes do nascimento miraculoso de Atena (§ 84). No entanto, na teogonia órfica a significação é mais matizada: nela se reconhece o esforço de fazer de um deus cosmocrata o criador do mundo que ele governa. De mais a mais, o episódio reflete a especulação filosófica referente à produção de um Universo múltiplo a partir da unidade . Em que pese aos retoques sofridos, o mito tem ainda uma estrutura arcaica. Com toda a razão, já se sublinharam as analogias com as cosmogonias egípcia e fenícia.
Outras tradições postulam como princípio primeiro Nyx (a Noite), que gerou Urano e Geia; ou Oceano, do qual emergiu o Tempo (Khronos), que, mais tarde, produziu o Aither e o Caos; ou o Um, que deu à luz o Conflito, por cuja obra a Terra foi separada das Águas e do Céu. Recentemente, o papiro de Derveni revelou uma nova teogonia órfica, centrada em torno de Zeus. Um verso atribuído a Orfeu proclamava que “Zeus é o começo, o meio e o fim de todas as coisas” (col. 13, 12). Orfeu designou Moira (o destino) como o pensamento de Zeus). “Quando os homens dizem: ‘Moira teceu’, entendem que o pensamento de Zeus determinou o que é e o que será, e também o que deixará de ser” (col. 15, 5-7). Oceano nada mais é do que uma hipóstase de Zeus, tal como Gê (Demetér), a Mãe, Reia e Hera não passam de diferentes nomes da mesma deusa (col. 18, 7-11). A cosmogonia possui uma estrutura ao mesmo tempo sexual e monista: Zeus fez amor “no ar” (ou: “por cima”) e criou assim o mundo. O texto, porém, não menciona a parceira . O autor proclama a unidade da existência afirmando que o lógos do mundo é semelhante ao lógos de Zeus (col. 15, 1-3). Daí resulta que o nome que designa o “mundo” é “Zeus” (cf. Heráclito, fr. B 1, B 32). O texto conservado pelo papiro Derveni é importante sob vários aspectos: por um lado, confirma a existência, numa época remota, de verdadeiros conventículos órficos; por outro lado, ilustra a tendência monista, ou até “monoteísta”, de certa teogonia órfica.
Quanto ao mito da origem do homem tendo por base as cinzas dos Titãs, é claramente atestado apenas em alguns autores tardios (séculos I-II A.D.) . Mas, como tentamos demonstrar a propósito do tema mítico-ritual Dioniso-Zagreu (§ 125), encontram-se alusões em fontes mais antigas. Apesar do cepticismo de certos estudiosos, é possível ver referências à natureza titânica do homem na expressão de Píndaro: “a expiação de um luto antigo” (fr. 133, Schr.) e num passo das Leis (701 c) sobre aqueles que “apresentam a velha natureza dos Titãs”. Segundo uma informação de Olimpiodoro, pode-se supor que Xenocrates, o discípulo de Platão, associava a noção de corpo enquanto “prisão” com Dioniso e os Titãs .
Seja qual for a interpretação que se dê a essas poucas alusões obscuras, é certo que o mito dos Titãs era considerado, na Antiguidade, como “órfico”. Segundo esse mito, o homem participava, ao mesmo tempo, da natureza titânica e da divindade, uma vez que as cinzas dos Titãs continham igualmente o corpo da criança Dioniso. No entanto, através de purificações (katharmoí) e ritos iniciatórios (teletaí), e buscando a “vida órfica”, chegava-se a eliminar o elemento titânico e a tornar-se um bákkhos; em outras palavras, isolava-se e assumia-se a condição divina, dionisíaca.
Inútil sublinhar a novidade e a originalidade dessa concepção. Lembremos o precedente mesopotâmico: a criação do homem por Marduk a partir da terra (isto é, do corpo do monstro primordial Tiamat) e do sangue do arquidemônio Kingu (cf. § 21). Mas a antropogonia órfica, por mais sombria e trágica que pareça ser, comporta, paradoxalmente, um elemento de esperança, ausente não só na Weltanschauung mesopotâmica, como também na concepção homérica. Porque, a despeito da sua origem titânica, o homem participa, pelo modo de ser que lhe é próprio, da divindade. É até capaz de libertar-se do elemento “demoníaco” manifesto em toda existência profana (ignorância, regime carnívoro etc). Pode-se discernir, de uma parte, um dualismo (espírito-corpo) muito próximo do dualismo platônico; de outra parte, um conjunto de mitos, crenças, comportamentos e iniciações que asseguram a separação do “órfico” dos seus semelhantes e, em última análise, a separação da alma do Cosmo. Tudo isso evoca muitas soteriologias e técnicas indianas (§ 195) e antecipa-se a diversos sistemas gnósticos (§§ 229 s.).
Guthrie, The Greeks and their Gods, pp. 316 s. Os jônios, pouco atraídos pela religião, faziam a si mesmos a pergunta filosófica: “Qual é a relação entre a variedade múltipla do mundo onde vivemos e a substância única e original de onde tudo nasceu?” Ver também, do mesmo autor, A History of Greek Philosophy, I, p. 132. ↩
Platão, República, 364 e, Crátilo, 402 b, Filebo, 66 c; Eurípides, Hipólito, 954; Aristóteles, Da Alma, 410 b 28; Suidas dá uma longa lista de obras atribuídas a Orfeu (Kern, Orph. Fr., n.° 223); cf. a análise crítica em L. Moulinier, Orphée et l’Orphisme à l’époque classique, pp. 74 s. ↩
“…Sacrificantes mendigos, adivinhos, que assediam as portas dos ricos, persuadem-nos de que obtiveram dos deuses, por meio de sacrifícios e encantamentos, o poder de perdoar-lhes as injustiças que puderam cometer, ou que foram cometidas pelos seus antepassados … Para justificar os ritos, produzem uma multidão de livros compostos por Museu e por Orfeu, filhos da Lua e das Musas. Com base nessas autoridades, persuadem não só indivíduos, mas também Estados, de que há para_ os vivos e os mortos absolvições e purificações …; e essas iniciações, pois é assim que lhes chamam, nos livram dos tormentos dos infernos” (República, 364 b-365 a). ↩