Brun: O Logos em Heráclito

O Logos que Heráclito invoca é um verbo transcendente de que o filósofo se faz intérprete. O Logos que se dirige a Heráclito é precisamente o Sentido, que desce até ele à maneira de mensagem a transmitir: «Se não é a mim, mas ao Logos, que vós escutais, é sensato reconhecer que tudo é um.» (fgt. 50)

O Logos é aquilo segundo o qual todas as coisas acontecem (fgt. 1), goVema o mundo (fgt. 72) e, além disso, abriga-se na alma (fgt. 45). Mas a própria profundeza de que provém não no-lo torna completamente acessível: «Tu não poderás atingir os limites da alma, por muito longe que te conduza o teu caminho, de tal modo é profundo o Logos que abriga.» (fgt. 45) Assemelha-se às palavras graves e sem disfarce da sibila, cuja «voz atravessa milhares de anos, graças ao deus que a anima» (fgt. 92). Como o oráculo que fala sem dizer isto ou aquilo, o Logos transmite-nos o Sentido, competindo-nos decifrá-lo na medida das nossas forças. Sabemos que «o mestre cujo oráculo está em Delfos nada diz ou esconde, apenas significa» (fgt. 93). As suas palavras permanecem misteriosas ao homem, embora se lhe dirijam. O mesmo se passa nas relações do homem e do Logos: «Embora estreitamente unidos ao Logos que governa o mundo, afastam-se dele e acham estranho o que todos os dias encontram.» (fgt. 72) Embora presentes, os homens estão como que ausentes, assemelham-se a surdos (fgt. 34). Por isso Heráclito nos diz: «Os homens são incapazes de compreender o Logos eterno, quer antes de o ouvirem quer quando o ouvem pela primeira vez. Porque, embora todas as coisas aconteçam segundo o Logos, os homens parecem sem experiência, quando se aplicam a palavras ou actos semelhantes aos que exponho, distinguindo cada coisa segundo a natureza e dizendo o que é. Mas os outros homens esquecem o que fazem quando vigiam, como esquecem o que fazem enquanto dormem.» (fgt. 1)

O drama da condição humana provém de que, «embora o Logos seja comum a todos, a maior parte vive como se possuíssem um pensamento particular» (fgt. 2). Há, pois, uma presença e um afastamento daquilo através do qual o homem pode elevar-se acima de si próprio para se compreender. Porque «a mansão do homem não abriga o conhecimento, mas a do deus possui-o» (fgt. 78).

Podemos então dizer que há um segredo do homem, no duplo sentido deste complemento de nome; há um segredo que pertence ao homem, mas tal segredo é também o segredo que lhe diz respeito. Infelizmente, os homens não sabem ouvir nem dizer (fgt. 19), vivem na aparência (fgt. 17) e dela se alimentam; por consequência da sua incredulidade, a maior parte deis coisas divinas escapa-lhes (fgt. 86); no entanto, o pensamento é comum a todos (fgt. 113) e «é dado a todos os homens conhecer-se a si próprios» (fgt. 116). O essencial é obedecer à vontade do Uno (fgt. 33) e apoiar-se no que é comum a todos (fgt. 114). Mas, diz Heráclito explicitamente: «Se não esperas, não encontrarás o inesperado que é selado e impenetrável.» (fgt. 18)

O Logos é, pois, simultânea e paradoxalmente, um Sentido que nos é transcendente e uma significação que nos é imanente. O Logos situa-se no coração da brecha pela qual o homem é dilacerado entre o Ser perdido e a existência que o constitui; a sua condição só pode ser trágica. (Jean Brun, “Pré-Socráticos”)

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