ouranioi

1. A crença na divindade dos corpos celestes é velha entre os Gregos. Na Apologia 26d Sócrates diz que toda a gente acreditava neles, todos, talvez, excepto Anaxágoras que foi julgado sob a acusação de impiedade, parte da qual envolvia a divindade dos ouránioi (Diógenes Laércio II, 12). De facto, a crença era tão antiga que tanto Platão (Crátilo 397c-d, Leis, 885e; confrontar Leis 966d onde a ênfase é algo diferente) como Aristóteles (De phil., frg. 10) reportam os começos da crença do homem em Deus a uma contemplação dos céus. Os motivos são vários: a identificação do ar – psyche – vida (ver aer), ligada à aparente eternidade do seu movimento, e a descoberta da ordem (kosmos) nos seus movimentos; o argumento do movimento eterno é especificamente atribuído ao pitagórico Alcméon, por Aristóteles (De ano. I, 405a; confrontar Cícero, De nat. deor. i, 27).

2. Platão aceitou a sua divindade (República 508a) e deu-lhes lugar importante na sua cosmologia (Timeu 38c-39e); eram, de fato, as únicas coisas materiais feitas pelo demiourgos. Tanto nas Leis (898d-899b) como no Epinomis (981e) diz-se que eles possuem almas e que se movem pela mais perfeita deliberação (Epinomis 982c). A ligação exata entre os corpos e as almas dos ouránioi não é especificada, mas são delineadas três possibilidades nas Leis (ver kinoun 3).

3. Quando Aristóteles escreveu o seu primitivo diálogo Sobre a Filosofia ainda acreditava nas almas platônicas das estrelas e atribuiu-lhes um papel na sua teoria da causalidade do movimento (frg. 24; ver kinoun 8). Mas quando escreveu posteriormente o De coelo foi um tanto ambíguo sobre o assunto. Estão ainda presentes (II, 292a), mas não parecem ter papel algum no movimento das estrelas, que é agora explicado em função da physis da matéria constituinte da esfera em que estão incrustadas, i. e., o aither. Na Metafísica não se veem em parte alguma e quando Aristóteles passa a explicar os movimentos dos corpos celestes apoia-se, em vez disso, numa teoria de múltiplos primeiros motores que podem ser e foram construídos como as almas dos vários planetas mas são muito mais provavelmente inteligências separadas (ver kinoun 11-12).

4. Isto não quer dizer, contudo, que Aristóteles deixasse de acreditar na divindade dos corpos celestes; ele apenas os abandonou como causas filosóficas. Para ele, como para Platão (ver Timeu 39c) eram «deuses visíveis» (ver Metafísica 1028a) e mais divinos do que os homens (ver Phys. II, 196a e Eth. Nich. VI, 1141a). E uma vez mais a razão é a falta aparente de qualquer mudança nas suas atividades, facto confirmado por milênios de registos astronômicos (ver De coelo I, 270b). No mesmo passo Aristóteles evita outro tipo de argumento histórico. Todos os homens acreditam em deuses e localizaram-nos invariavelmente nos céus, ligando — argumenta ele — o conceptualmente imortal ao visivelmente incorruptível. Assim, na Metafísica 1074b remete para uma prova confirmativa da crença religiosa popular na divindade dos planetas, tradição transposta em forma de mito. Aristóteles pode estar aqui a referir-se ao costume relativamente recente de associar os planetas aos deuses da mitologia grega. A primeira referência nesse sentido na literatura grega ocorre no Timeu 38d onde Platão fala da «estrela sagrada de Hermes», e a primeira lista completa surge no Epinomis 987b-d onde a origem do costume é descrita como sendo síria.

5. Em períodos sucessivos a crença nos corpos celestes foi encorajada pela crescente importância da astrologia e, assim, sucedeu com frequência que a influência daqueles nos problemas humanos foi debatida com maior entusiasmo que a sua existência. Há uma longa polêmica contra os deuses astrais em Lucrécio V, 110-145 (confrontar Epicuro em Diógenes Laércio X, 77), dirigida provavelmente contra os estoicos dado que contém argumentos contra a divindade da terra e também do mar. O panteísmo estoico tendia, na verdade, a mover-se nessa direção (ver SVF II, 1027), e a doutrina específica da divindade dos corpos celestes podia ligar-se, como Aristóteles o fizera no De coelo, à natureza do aither (assim o estoico em Cícero, De nat. deor. II, 39-43), precisamente em virtude da sua substância ígnea e rápido movimento, indicações infalíveis de vida e inteligência. Mas estas posições foram fortemente criticadas pelos cépticos (ibid. III, 23-24, 51) que se opuseram a todas as espécies de adivinhação (mantike).

6. O argumento de que a rapidez e a qualidade ígnea do aither são uma indicação da sua natureza intelectual remonta, ao fim e ao cabo, a teorias da percepção como as de Diógenes de Apolônia (ver aisthesis 12, noesis 5) mas tem origens mais imediatas no jovem Aristóteles. Platão sustentara que as estrelas eram compostas de uma substância ígnea e que eram seres vivos inteligentes (Timeu 40a-b), e que as almas humanas existiram primeiro nas estrelas antes de serem incorporadas na terra (ibid. 41d-e). E é por esta razão, segundo Platão, que a intelecto divino em nós se localiza na cabeça (ver kardia 4) para que possa estar mais próximo do seu «congênere celeste» (ibid. 90a). Aristóteks pegou nestas sugestões e incorporou-as na sua doutrina do «quinto elemento» {quinta essentia; ver aither) que é a substância da qual são feitos tanto os corpos celestes como o nosso nous (De philosophia, frg. 27 = Cícero, Acad. post. I, 26; esta é, evidentemente, incompatível com a sua teoria posterior do noûs como energeia espiritual; ver noûs 11). Somos ainda informados (Cícero, Tusc. I, 22) de que ele cunhou um termo novo para descrever o seu movimento perpétuo e contínuo, endelecheia (confrontar a abordagem semelhante do aither no De coelo I, 270b). O corolário mencionado por Cícero (De nat. deor. II, 42-43), de que as estrelas alimentam o aither, pode também ser aristotélico.

7. A teoria continuou a florescer em todos os seus aspectos. Reaparece no renascimento do pitagorismo, no dealbar da era cristã (Diógenes Laércio VII, 26-27), e desempenha um papel nas teorias da alma de Posidônio (ver Cícero, Tusc. I, 42-43 e confrontar sympatheia, 5). Para Fílon os corpos celestes são «animais intelectuais» (zoa noera) ou, antes, cada um é uma inteligência (noûs) afastada do mal (De opif. 73). O culto destes deuses celestes, encorajado pelo interesse ardente pela astrologia e pela demonologia (cf. Macróbio, In Somn. Scip. i, 12, 14; Plutarco, De defec. orac. 416d-f), deve ter aparecido, por vezes, como prestes a esmagar a posição racionalista pacientemente construída. Este parece ser o , aspecto da luta defensiva travada por Plotino. Como bom platônico e como herdeiro algo relutante da tradição peripatética, aceitou a doutrina das inteligências celestiais e das estrelas como seres vivos (Enn. v, 1, 2) que levam a uma vida de bondade e felicidade (IV, 8, 2). Mas mantém-se firme na sua pormenorizada resistência à astrologia contemporânea (IV, 4, 30-45; ver sympatheia 8).

Para a imortalidade celestial, ver aer, aphthartos; para o problema dos corpos astrais, ochema; sobre o movimento dos corpos celestes, kinoun; e sobre a inteligência destes, noûs. [F. E. Peters, Termos Filosóficos Gregos]