As sensações constituem a fonte mais comum de nossos erros. Eis o motivo apontado por Plotino: “Estamos acostumados, olhando as coisas daqui (deste mundo), a separar o pensante e o pensado” (En. V, 9, 5, 10). A não-identidade entre sujeito e objeto pode levar-nos a enganos.
Porém, há mais. Plotino assevera que o mundo sensível como tal é um “mentiroso”. Por quê? Sua resposta soa assim: “A matéria é um fantasma em ato (energeía (dativo!) eídôlon), portanto, uma mentira em ato, isto é, uma verdadeira mentira”1. Ela é como uma imagem vista num espelho (Cf. En. III, 6, 13, 31 s). A imagem deste mundo semelha apenas um reflexo embaçado do arquétipo: é méthexis, skià kai eikôn. Por isso, diz, com acerto, Dominic O’Meara: “A matéria não é, portanto, uma causa independente; ela deriva, em última análise, como tudo o mais, do Uno”2. Apesar de ser mentiroso, “nosso mundo tão belo não é senão sombra e imagem” (skià kai eikôn) (En. III, 8, 11, 29).
Com essas palavras, Plotino desfere um golpe à admiração que ele mesmo devotava à beleza do universo, porquanto afirma, sem rebuços: “Que outra imagem poderia ser mais bela do que este mundo?” (En. II, 9, 4, 27) Por outra, Plotino afirma que, “graças ao seu ser–imagem, referida à sua origem, este mundo é o melhor de todos os mundos”3.
Porém, ao mesmo tempo que é mister admirar a beleza do mundo, torna-se imperioso não prender-se às suas aparências de Circe enganadora. Por isso, apregoa o áphele pánta.
Por ser o mundo sensível uma mentira, ele não se basta. E a prova de sua insuficiência está na permanente mudança, no contínuo fluir. O mundo material apresenta-se como um mendigo, que vive de esmolas. Tudo nele é adventício. A beleza, a bondade, a unidade, o ser, tudo quanto nele há tem-no através de outrem. Em suma, é dependente. “As coisas sensíveis são o que delas se diz, isto é, por participação, pois a natureza, que é seu substrato, traz de outrem (állothen) a forma (…)” (En. V, 9, 5, 37-38). Em outro passo, lemos: “A matéria não possui e não recebe a forma, como se essa fosse a sua vida e o seu ato, mas a forma provém de outro lugar (allachóthen: En. VI, 2, 23-24)”. E, ainda: “Quando (o sábio) vê as coisas belas de cá (deste mundo) esvaírem-se, então ele compreende, plenamente, que elas têm de outra fonte (anóothen) a beleza que o fascina” (En. VI, 7,31,28-29).
Devido à participação (méthexis), o mundo é belo, mas não deixa de ser mera imagem que perde seu brilho, quando olhado com olhos que contemplaram o arquétipo eterno. O nosso mundo nada mais constitui do que uma imitação, um vestígio: “Do alto (de lá = ekeíthen), provém tudo, mas lá tudo é mais belo” (En. V, 8, 7, 17-18).
Ainda que admire o universo como algo belo, conforme aludimos, Plotino insiste em que não deve o homem fixar-se nele. Mas, por outro lado, seria impiedade e injustiça desprezá-lo, como o faziam os gnósticos, porquanto não se podem procurar “na segunda categoria (= dos seres criados) as qualidades primárias (= do criador)” (En. III, 2, 7, 3: mêd’en deutérois zêtein tà prôta). Faz-se mister admirar as belezas, mas, ao mesmo tempo, esforçar-se constantemente por delas afastar-se. Estamos ante uma tensão interior, com duas forças antagônicas lutando entre si. As belezas deste mundo devem ser um trampolim, para que o homem se eleve ao puro modelo: “Quando se admira uma cópia, é ao modelo que vai a admiração” (En. V, 8, 8, 11-13). Satisfazer-se com este mundo representa, para os homens, esquecer o seu princípio e esquecer-se de si mesmos: “(…) são como crianças que, afastadas desde cedo de seus pais e educadas largo tempo longe deles, não se conhecem a si, nem aos seus pais (En. V, 1,9-11).
Se o mundo da matéria é enganoso, onde procurar a verdade? Na origem, na causa de tudo, que é o Uno, o theós, o Bem-em-si. Isso se consegue, atingindo o verdadeiro eu interior, pela renúncia radical a tudo, fruto do imperativo ético, consubstanciado no famoso áphele pánta! (En. V, 3, 17, 38) O suicídio não está incluído nessa renúncia a tudo: “Não se deve agir assim!” (En. I, 9, 1, 10), porque poderia ser efeito da angústia, dor ou ira. Plotino tolera-o, no entanto, quando o infortúnio representa um peso (para os prisioneiros de guerra): “Se a desventura lhes é um fardo, podem deixar a vida” (En. I, 4, 7, 44). Aqui Plotino assemelha-se aos estoicos, os quais, em se tornando a vida insuportável, propunham, abertamente, o suicídio. (Excertos de “Plotino, um estudo das Enéadas”, de R. A. Ullmann)
En. II, 5, 5, 23-24. Em grego consta o substantivo pseûdos, o qual quer dizer mentira, falsidade, opondo-se a alêtheia. HARDER/BEUTLER/THEILER traduzem pseûdos por Trug, o que significa ilusão. FAGGIN escreve menzogna (= mentira). ↩
O’MEARA, Dominic, Plotin – une introduction aux Ennéades (Fribourg Suisse, 1992), p. 104. ↩