As fontes de uma parte do mito de Er são identificáveis.
Podemos ter algumas dúvidas quanto às que se têm encontrado para certos motivos, como os duplos chasmata que conduzem do céu à terra, a ida e vinda e saudações das almas, que figuram de modo semelhante em mitos iranianos do Avesta; e como as cores dos contrapesos do fuso, que correspondem aproximadamente aos símbolos dos planetas, do Sol e da Lua entre os sacerdotes caldaicos1. Mas teremos de reconhecer, por outro lado, que há certa relação entre a experiência de Er e a revelação xamanística2. O motivo repetido do trovão3, os movimentos dos contrapesos e o canto harmonioso das Sereias4, a reincarnação e a noção de Necessidade (Ananke) são pitagóricas5, e provavelmente também o beber das águas do rio do esquecimento.
Quanto à parte cosmológica do mito, supõe-se geralmente que descreve uma representação mecânica do céu6. A coluna de luz é identificada, desde a Antiguidade, ora com a Via Láctea, ora com o eixo do mundo7. Deve notar-se no entanto que, apesar da minúcia mm que Platão imagina em pormenores a estrutura do universo (tamanhos relativos e cores dos contrapesos), não deverá insistir-se demasiado na correspondência de todos eles. A interpretação alegórica exaustiva é tarefa arriscada, que é preferível deixar ã argúcia de cada um8.
Um ponto deve ser salientado, como central em todo este mito: a escolha de destinos, sobretudo porque aqui se concilia a responsabilidade mm a predeterminação9, O facto, notado já por R. L. Nettleship10 e outros, exprime-se na proclamação do hierofante, numa frase concisa e solene11:
A responsabilidade é de quem escolhe. O deus não é culpado.
Mas, além disso, temos o simbolismo de Ananke e das Parcas ou Moirai, essas velhas entidades mitológicas que significam a porção ou lote destinado a cada um na vida, o qual em Homero era inalterável, até para os deuses12). A noção de irreversibilidade mantém-se, quando, após a escolha, a alma tem de passar por Láquesis, para que lhe conceda um daimon que a faça levar a cabo o empreendimento; por Cloto, para que lhe ratifique a demão; e por Átropos, para que a torne irrevogável (funções estas que estavam já preludiadas na etimologia do nome de cada uma). O elemento novo é, portanto, a possibilidade de opção entre um elevado número de modelos. Nessa ocasião é «o grande perigo para o homem, e por esse motivo se deve ter o máximo cuidado em que cada um de nós ponha de parte os outros estudos, para investigar e se aplicar a este» (X. 6i8b-c).
Assim, o problema da responsabilidade e predeterminação13, que começara a esboçar-se vagamente em Homero, e fora tema central nas grandes tragédias áticas do séc. V a.C., fica equacionado no plano escatológico, em ligação com a teoria da metempsicose.
A hipótese das origens orientais desta parte do mito foi defendida por J. Bidez, Eos ou Platon et l’Orient, Bruxelles, 1943, cap. vi, «Le Mythe d’Er», e «Les Couleurs des Planètes dans le Mythe d’Er», Bulletin de l’Académie de Belgique, 1935. ↩
O facto foi notado por E. R. Dodds, The Greeks and the Irrational, Berkeley, 1951, pp. 210 e 225, n. 8, que supõe como intermediários os Pitagóricos, que Platão conheceu na sua viagem ao ocidente grego, cerca de 390 a.C.. ↩
Sabe-se, através de uma informação de Eliano, Varia Historia IV.17 = VS. 58 (45) C.2, que os Pitagóricos explicavam os tremores de terra como «assembleias dos mortos». ↩
A Ananke figura em Diels, Doxographi Graeci, 321, e também no fr. 115 Diels das Purificações de Empédocles. ↩
E. g., E. Frank, Plato und die sogenannten Pythagoreer, Halle, 1923, p. 344, n. 69 (apud H. W. Thomas, Epekeina, p. 103); F. M. Cornford, The Republic of Plato, p. 350, onde remete para o seu livro anterior, Plato’s Cosmology, 1937, e para J. A. Stewart, The Myths of Plato, p. 165. ↩
H. W. Thomas, op. cit, p. 103, reconcilia as duas teorias, supondo que o eixo do cosmos, centro da ordem do universo, tomava o aspecto de uma coluna de luz, para os que se aproximavam. ↩
Um exemplo feliz é este de R. L. Nettleship, Lectures on the Republic of Plato, p. 362: «A haste e o gancho do fuso são de aço, quer dizer, são imperecíveis e inalteráveis, mas o peso, o sistema de esferas, isto é, a totalidade do universo visível, é parte de aço e parte de outras substâncias, o que quer dizer que o universo em parte apresenta uma lei uniforme e eterna, e em parte irregularidade e mutação». P. Friedländer, Plato, 3, p. 137, interpreta outro aspecto da alegoria: «O fuso do mundo representa, numa imagem visível, o mais alto objeto de conhecimento». ↩
Preferimos dizer «responsabilidade», em vez de «livre-arbítrio», porque esta noção é post-platónica, conforme foi demonstrado por M. Pohlenz (Die Stoa, I, Gottingen, 1948, e Griechische Freiheit, Heidelberg, 1955), que a data de Zenão de Chipre. ↩
Lectures on the Republic of Plato, p. 363. Veja-se também R. C. Cross and A. D. Woozley, Plato’s Republic A Philosophical Commentary, p. 288. ↩
X: 617c. Em grego, são apenas quatro palavras, dispostas em quiasmo: Aitia elomenou Theos anaitios. ↩
Sobre as restrições que podem fazer-se a esta afirmação, vide os nossos Estudos de História da Cultura Clássica, P, pp. 99-101. (Na 8.a ed., 1998, pp. 131-135 ↩
Sobre a evolução do conceito de Moira, veja-se o nosso artigo na Enciclopédia Verbo, s. v. ↩