O Uno

Uno, Absoluto, Deus1 ou Bem sinonimizam nas Enéadas de Plotino2. Respigaremos, para este texto, alguns passos da obra do licopolitano, a fim de apresentar, de modo sucinto, o perfil do Uno-Deus. Guiar-nos-emos pelas palavras de Plotino e por abalizados comentaristas.

Faria uma ideia errônea do Princípio Primeiro – o Uno – quem pensasse ser ele algo de todo abstrato, despojado de toda realidade, um número cardinal ou ordinal, um abismo em que impera o vazio. A essa ideia não corresponderia nenhum ente, nenhum conteúdo, nenhuma realidade. Tais assertivas, conforme veremos, são insustentáveis, quando alguém as quer aplicar a Plotino.

Se alguém considerasse o Uno (Hén) como potência pura, isto é, matéria prima, em oposição a ato, também não estaria concorde com o pensamento do filósofo de Licópolis, porquanto Plotino deixa claro que a dynamis não é potência receptiva: “O Uno é a potência (dynamis) de todas as coisas, porém não no sentido em que se afirma que a matéria está em potência, pois esta, sendo passiva, somente recebe”(En. V, 15, 34). O Uno é a dynamis de tudo, isto é, tem o poder de tudo gerar. A esse aspecto retornaremos.

De outro lado, Plotino diz, paradoxalmente, que o Uno não pensa, que ele não é o Bem, nem que ele é. Depois afirma que ele é Super-Pensamento, Super-Bondade, Super-Ser. O Uno é epékeina tês ousías, isto é, além do ser ou acima do ser. “Ele basta a si mesmo, nada precisa procurar fora de si, estando acima de todas as coisas (hypèr tà pánta ónta)” (En. VI, 7, 30-32 ). “Quando dizemos dele ‘o Bem’, não lhe conferimos um atributo, como algo que lhe pertence. Ele é ele mesmo” En. VI, 7, 38, 4-6 ). Não há mister usar o verbo “ser”, dizendo: “Ele é o Bem”. Uno e Bem são convertíveis e constituem perfeições simples.

E mais. Ele (Uno) não é tudo, nem parte do todo: “Ele é acima das coisas, é a sua causa e ele não é essas coisas” (En. V, 5, 13, 19-20 ). Noutras palavras, ele transcende a tudo, mas, ao mesmo tempo, está em toda parte. “Se ele estivesse apenas em toda parte, seria o todo” (En. III, 9, 4, 3 ). Teríamos monismo e não panenteísmo.

Porém, ao Uno não se lhe nega a perfeição encontrada nos outros seres. Se estes existem, é por ser o Uno o princípio3 deles. Por conseguinte, necessariamente lhes é superior. A existência deles dá-se por participação (Cf. En. V, 5, 4), ou seja, foram feitos. Tendo sido feitos, eles não se identificam com quem os fez4. Isso significa que no Uno as criaturas se encontram eminenter5. Por outra, “a causa não é a mesma coisa que o causado” (En. VI, 9, 6, 54-55); “a causa de todas as coisas não é nada delas (oudén esti ekeínôn)” (En. VI. 9, 6, 56 ). “O Uno não pode ser uma das coisas às quais ele é anterior” (En. V, 3, 11, 19 ).

Por ser a archê de tudo, o Uno é mais perfeito e melhor que seus efeitos: “O criador (poioûn) é melhor do que as coisas criadas, porque é mais perfeito (teleióteron)” (En. V, 5,13, 38 ).

Por essas indicações, que se poderiam multiplicar, já percebemos, com clareza, a distinção do Uno e do múltiplo e, ao mesmo tempo, a origem do múltiplo a partir do Uno.


  1. Quando Plotino emprega a palavra divino (theion), vincula-a a Deus. No entanto, é mister sempre ver o contexto em que se encontra a palavra theós, por não ter sentido unívoco: “Gott kann das Eine sein, der Geist, die Weltseele, der Kosmos mit seiner Seele und in gewisser Beziehung auch die Menschenseele; entgöttlicht sind nur für sich genommen Kõrper und Materie” (Plotins Schriften: Griechisch – deutsch, HARDER/BEUTLER/THEILER (Hamburg, 1971), Band VI). A respeito do termo Theós, cf. também ARNOU, René, Le désir de Dieu dans la philosophie de Plotin, 2. ed. (Rome, 1967), p. 111-143. 

  2. “L’Uno (al quale spetta propriamente il nome di Dio), ossia il primo principio o rorigine in sé, non è essere ma è piuttosto ‘sovra-essere’ (…)” (BEIERWALTES, Werner, Agostino e il neoplatonismo cristiano (Milano, 1995), p. 96). 

  3. Princípio, para o licopolitano, não se reverte de sentido lógico aristotélico, mas tem significação ontológica, porque o Uno gera o que vem depois dele, não-movido por cego instinto, mas porque é plenitude transbordante. 

  4. O Uno é “diverso de tudo”- pántôn héteron (En. V, 4, 1, 6); “Ele é só e desprovido das demais coisas” – mónon kai êremon tôn állôn estí (En. V, 5, 13, 6); “Ele é para além do Ser”- epékeina toú óntos (En. VI, 6, 5, 38); “Ele é o primeiro e acima do ser” – prôtôs autòs kai hyperóntôs autós (En. VI, 8, 14, 43). À saciedade comprovam esses textos que Plotino confere um lugar de destaque ao Uno, acima das demais realidades. 

  5. “Since the One is the cause of the being of everything else, they are in the One. How? Virtually or eminently, and not in the manner in which they exist as finite beings” (GERSON, L. P., God and Greek Philosophy (London and New York, 1994), p. 208). Claras são a esse respeito as palavras de Plotino: “Mas como o Uno é princípio de todas as coisas? (…) Porque as possuía já. (…) Sim, já as possuía, mas não-distintas. Distintas são apenas no segundo momento, no Lógos, onde já estão em ato. O Uno somente é a potência de tudo” (En. V, 3, 15, 28-33). Cf. etiam En. VI, 7, 32, 13-15; En. VI, 8, 21, 24-25