káthodos: descida, queda (da alma)
1. As origens da figura da queda ou afastamento da alma da sua residência natural e imortal são religiosas, como surge da sua primeira ocorrência entre os filósofos nas Purificações de Empédocles (frg. 115; pode, em certa medida, ter sido sustentada também por Heráclito; ver frgs. 62, 68; Platão, Górgias 492e-493b; Plotino, Enéadas IV, 8, 1) onde o afastamento é resultado de um crime primitivo (derramamento de sangue ou comer carne humana; frgs. 136, 137, 139) cometido por um dos daimones (daimon) cujo destino natural era a imortalidade. Devido a este crime ele é submetido durante o período de um «grande ano» (30.000 estações em Empédocles, frg. 115, verso 6; o número varia algures), a reencarnações sucessivas neste mundo de mudança.
2. Este relato está intimamente ligado à teoria pitagórica da alma imortal (ver psyche) e à doutrina consequente da palingenesia. Este tipo de crença é vulgar em Platão e é expresso numa série de grandes mitos (ver athanatos). Platão conhece a versão de Empédocles (e, ao que parece, o mito relacionado da devoração de Dioniso pelos Titãs, a criação do homem das cinzas destes e a consequente «natureza titânica» dos mortais cuja centelha dionisíaca está por isso incorporada num elemento titânico que é o resultado direto de um «pecado original»; ver Leis 701c) e emprega-a, com as caraterísticas transformações platônicas, no Fedro 248c-249d. A alma perde as suas asas e cai no mundo sensível. Mas enquanto a ênfase em Empédocles é posta na vinda da alma imortal ao kosmos cíclico, a queda resultante do pecado (a sua natureza não é especificada) é usada por Platão para explicar a presença da alma no corpo e integrada, através da conexão entre a recordação (anamnesis) e os eide, nas doutrinas metafísicas e epistemológicas de Platão.
3. O problema da descida da alma, seu modo e finalidade, continuou a suscitar a atenção dos pensadores de tradição platônica, e o melhor testemunho do interesse destes é, sem dúvida, o ensaio dedicado à questão por Plotino (Enéadas IV, 8) e os passos do De anima de Jâmblico preservados em Estobeu. Regista-se uma grande variedade de opiniões, e são admiravelmente pormenorizadas a mecânica e a paisagem da viagem através das esferas, misturadas de observações de Platão (a visão pré-natal das esferas dada à alma no Fedro 274c-248c e na Republica 616d-617d, e a sugestão, na República 614d, de que a descida, pelo menos para alguns, faz-se através dos céus) e de muita erudição astronômica. É típica a interpretação alegórica que Porfírio faz da «Caverna das Ninfas» na Od. XIII, 102-112 (com alguns dos pormenores recebidos de Numênio; cf. De antro nymph. 21, 28); as viagens de Odisseu tornam-se, nesita época enamorada de símbolos, a representação arquetípica das peregrinações da alma: ibid. 34-35 e o relato de Macróbio da descensus animae no seu comentário sobre o Somnium Scipionis (I, 11, 11-12-18); é típica a interiorização plotiniana do fenômeno (Enéadas IV, 8, 1).
4. A razão por que isto ocorreu deixa-nos consideravelmente perplexos. O Fedro anuncia-a como uma «lei da Necessidade», mas passa a ligá-la a um infortúnio (syntychia) da alma (248c). O Timeu apresenta um ponto de vista diferente. O kosmos deve conter todos os seres do kosmos noetos, de outro modo será incompleto; por esta razão são geradas criaturas mortais (41b-d). Plotino adere a esta opinião de que a ligação da alma com um corpo mortal é o cumprimento de uma finalidade divina e ditado pela própria natureza da alma (Enéadas IV, 8, 7). A mesma opinião é mantida por Proclo (In Ale. 328, 29; confrontar Elem. theol, prop. 206).
5. Mas neste mesmo passo de Plotino há, pelo menos, a sugestão de que a alma deve ser um pouco censurada pelo seu «zelo excessivo», e nas Enéadas V, 1, 1 nos é dado um relato ainda mais claro da sua «audácia» (tolma) e da sua alegria pela sua própria independência que a leva a fugir a Deus. A teoria do pecado pré-natal, embora seja pouco concordante com o resto do pensamento de Plotino, foi sustentada por outros pensadores. Segundo Jamblico (Estobeu, Ecl. I, p. 375), Albino encontra-se neste número ao fazer da queda resultado de livre escolha, mas isto pode referir-se ao vulgar motivo pitagórico da escolha da vida pela alma antes da palingenesia (República 617e: «o que escolhe é responsável; Deus é sem culpa»). Macróbio (I, 11, 11) fala de um «anseio pelo corpo» (appetentia corporis). Mas os adeptos mais conhecidos desta doutrina foram indubitavelmente os gnósticos que pensaram o mundo material como essencialmente o lugar do mal e para quem a queda da alma era um lugar-comum (ver Plotino, Enéadas II, 9, 10). (Termos Filosóficos Gregos, F. E. Peters)
Platão, separando como os órficos a alma do corpo descrevendo sua “queda” (mais inatenção e desarmonia interna que querer maligno), vislumbrava para alma zonas de purificação e de possíveis transmigrações, imagens e símbolos que se encontrará em todos seus discípulos. Do platonismo originário Plotino retém ao mesmo tempo o tema da “fuga” de um mundo transitório e prestigioso (entenda-se rico em sortilégios) e fundamentalmente a assimilação optativa ao divino. (Maurice de Gandillac)
O processo dialético de subida e descida, que na eliminação apofática de todos os conteúdos conhece o caminho ideal para o verdadeiro e que, opostamente, nas predicações catafáticas de Deus aprende a entender o cosmos inteiro com o auxílio de «nomes divinos», é típico da teologia platônica tanto de proveniência cristã como não cristã. Em Plotino se fala da «descida da alma ao mundo corporal» (Enéada IV.8.6); enquanto movimento de reascensão epistrófica é a verdadeira tarefa do homem (Porfírio, Vita Plotini 2,26: «alçar o divino em nós até o divino em tudo») — e também continua a sê-lo para o platonismo. (Schäfer)